Terça-feira.
Um dia qualquer numa semana ao acaso. Igual à terça da
semana anterior. Um número num calendário que se arrastava sem grandes
alaridos.
Mas aquela manhã era diferente.
As notícias mais recentes não eram muito positivas. O meu
pai tinha um problema.
A sua saúde fraquejava.
Mas não era um problema qualquer. Aliás, antes dessa terça,
não era sequer uma certeza. Era apenas um medo sufocante de que a palavra que
começava em C e acabava em O entrasse de repente por dentro, sem pedir licença,
derrubando tudo à sua passagem, deitando por terra as paredes do nosso lar
sagrado.
Seria possível que algo nos invadisse assim?
Os primeiros exames apontavam para isso. Mas faltava a
derradeira confirmação.
Eu já sabia. A mãe também. O olhar esquivo da minha irmã
dizia-me o mesmo. E quando a minha avó pediu para eu ter muita força para o que
estaria para vir, eu sabia.
Sabíamos todos.
E foi por isso que
nessa madrugada quase não dormi. Nessa manhã acordei cedo, mas não fui com o
pai até ao hospital para saber a verdade. Tinha que ficar. E como não tinha
descansado, arrastei-me pela manhã fora como pude.
Sem novidades. Ansioso. Sem um telefonema. Nervoso. Sem uma
mensagem.
Liguei. Continuavam à espera. Tornei a ligar. A esperava
prolongava-se.
E esperando, deitei-me na minha cama e cedi ao cansaço desgastante. Adormeci, se é que se pode chamar assim ao estado em que os meus
pensamentos eram mais sonhos que realidade.
Por uma terrível injustiça, tinha aguentado a manhã toda,
menos nos últimos momentos. E quando os meus pais chegaram a casa, eu estava
adormentado, meio esquecido do mundo. No meu canto, onde ainda residia alguma
esperança.
Assim, foi num estado inconsciente que senti a porta do meu
quarto abrir-se lentamente, ouvindo depois a voz do meu pai dizer “Então
filhote... estás a dormir?”. Ele não disse mais nada. Mas a voz tremia-lhe, saía-lhe
sem força.
Enquanto ansiava pela sua chegada, pouco antes de adormecer
naqueles instante, eu imaginei que talvez pudesse não ser nada, que poderíamos
estar todos apenas a ver o lado negativo.
Mas agora, de repente, como que a torturar-me por ter
pensado assim, a sua voz dizia-me tudo. Não foi preciso ouvir aquela horrível
palavra. Soube assim.
Era verdade. Tínhamos razão. E eu pensava que estava
preparado. Mas estava tão enganado. Ainda esperando algum escape, forcei a
minha cabeça contra a almofada, esperei despertar de algum pesadelo. Mas sem
efeito, era real.
Não chorei em frente ao pai. Abracei-o e não disse nada,
pois se falasse não aguentaria. Cairia tudo.
Depois encontrei-me sozinho, saí de casa e procurei um sítio
só meu. Subitamente senti-me mais pesado, como se a gravidade me puxasse mais contra a
terra, sem conseguir expressar-me, rendido a uma sensação de fraqueza tão
intensa como a vontade que tinha de gritar.
E no fundo, bem lá no fundo, gritei. E ninguém me diga que
os nossos gritos mudos não conseguem fazer-se ouvir cá fora, pois conseguem, e
de que maneira!
Até essa terça eu nunca tinha sentido tanto medo de perder
alguém que amava. Esse pensamento tinha-me passado pela mente algumas vezes.
Dava-me sempre arrepios.
Mas foi nesse dia que aprendi que ao tornar-se real, o medo
dá-nos um propósito.
Não tínhamos como escapar. Uma doença assim era uma doença
assim. Era impossível escolher-se entre enfrentá-la ou não.
E havia uma luta para começar.
Nesse mesmo dia jurei que não escreveria essa palavra. Não
lhe daria esse gozo; não a essa palavra que parece matar só de se pronunciar.
E assim fomos todos à luta. E lutámos por tudo, juntos.
Nunca foi fácil. Mas nem eu esperava que fosse. E mesmo assim eu nunca disse ou
escrevi essa palavra.
No dia em que fomos ao hospital saber que podíamos enfim
respirar de alívio, vi a face do meu pai transformar-se completamente. A angústia,
o peso e a ansiedade deram lugar a um respirar tão calmo e sereno, de olhos
brilhantes de alívio.
E nem assim eu consegui processar o sentimento e colocá-lo
em palavras. Apenas sorri, ao mesmo tempo em que o abracei com toda a minha
Força. Foi, sem precisar de grande justificação, um dos momentos mais felizes
da minha vida.
Só 6 meses depois consegui falar de tudo isto com o meu pai.
E mesmo assim ainda fraquejei quando tentei formular uma pequena frase sobre o assunto. Foi no último dia do ano, a poucos minutos de fazer a passagem e deixar
para trás de vez aqueles dias. “Que grande luta tivemos este ano. E agora
estamos aqui!”.
E depois de o dizer, abraçamo-nos os três. Eu, a mãe e o
pai. Estávamos ali.
Daquela palavra nem quero lembrar.
Ela ainda me assusta.
E há palavras bem mais bonitas que também começam em C e
acabam em O.
Digamos, por exemplo:
coração.
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