"un po' di pace che duri un eternità" "um pouco de paz que dure uma eternidade" |
Era muito pequeno. Talvez tivesse uns cinco anos. E por essa altura os meus pais puseram-me no Centro no Pedrógão, naquilo que era o que hoje chamamos jardim de infância. A verdade é que, por algum motivo, detestava ir para lá.
Ainda tão criança... mas já achava ter uma ideia muito própria sobre aquilo de que não gostava. E foi nessa contrariedade de não querer estar ali que descobri que até naquilo de que não gostamos podem haver momentos que nos trazem alegria e conforto. A meio da manhã chegava alguém que me fazia sentir melhor. Lá vinha o avô trazer-nos chocolates, tornando logo mais afável o dia e criando assim um bom motivo para lá ficar.
Esta memória é seguramente das minhas primeiras, das mais fortes. As outras crianças penduravam-se na rede que nos protegia da rua e admiravam-se com aquele senhor que ali vinha dar-nos doces. Lá vinha o Chico Bita. E era o meu avô. Meu. E na minha percepção, mais ninguém tinha um assim.
Por trabalhar ali, na distribuição do pão, era-lhe fácil passar por lá e mimar-nos com aqueles pequenos gestos. Mas eu não tinha noção disso e para mim ele era simplesmente o melhor momento dos dias que custavam a passar no Centro.
Nessa altura perdi o meu outro avô, o materno, e disso tenho poucas memórias, pois não teria ainda a carga emocional suficiente para entender que tipo de perda era essa, não sabia que coisa má era a morte ou por que não se podia viver para sempre junto dos nossos.
Ao crescer, passando por diversas fases da vida, fui perdendo mais pessoas próximas. E a cada perda já sabia sentir verdadeiramente que tipo de vazio nos ficava. Afinal... não podia ser para sempre aquela criança que ansiava por ver o avô chegar para lhe alegrar as manhãs.
Passaram muitos anos. Estava já na casa dos vinte, muito mais perto dos trinta, e diante de mim tinha o meu avô sentado no pequeno sofá da sala. Nesta altura ele já não via, pouco falava, pouco conseguia perceber do que se passava à sua volta. Nesse dia estava a dar-lhe de comer alguns pedaços de fruta e ele já nem sabia dizer-me se comia maçã, pêra, laranja... Os papéis tinham-se invertido, agora era eu grande e ele "pequeno", limitado pela doença que o derrubou. Quando lhe perguntava, dizia sempre que era bom, mas nem sempre sabia dizer-me o que era. E para ele estava sempre tudo bom, nunca tinha frio ou calor, nem sede, estava sempre tudo bem, mesmo quando nada estava certo. Foi assim que várias vezes dei por mim a engolir em seco, a disfarçar as lágrimas, que ele afinal nem conseguiria ver, mas que não me pareciam apropriadas.
Ele estava ali, mas muitas vezes já nem sabia quem era.
E no entanto houve um dia em que estávamos os dois à lareira e eu, conversando com o meu pai, perguntei que caminho devia tomar para chegar a uma terra que ficava para os lados de São Mamede. Sem sequer hesitar, o avô começou a falar e deu-me todas as indicações, que sabia ainda de cor. Por onde era mais perto, por onde era mais longe, por esses caminhos onde andara ele durante muitos anos. Ninguém os conhecia melhor.
Isto mostrou-me que então lá no fundo ele ainda sabia tudo, que às vezes esquecia, que nem sempre conseguia chegar àquelas memórias da sua vida, mas a prova estava ali. A prova de que o nosso ser é tão complexo como os problemas que nos assolam e de que, nessa complexidade, tudo o que nós fomos e fizemos permanece como um vinco forte.
Isto mostrou-me que então lá no fundo ele ainda sabia tudo, que às vezes esquecia, que nem sempre conseguia chegar àquelas memórias da sua vida, mas a prova estava ali. A prova de que o nosso ser é tão complexo como os problemas que nos assolam e de que, nessa complexidade, tudo o que nós fomos e fizemos permanece como um vinco forte.
Mais tempo passou.
Fui vê-lo ao hospital. Falei-lhe, perguntei como estava, não me respondeu. Perguntei se queria água, aí disse-me que não com a cabeça. Falei-lhe mais. Falhou-lhe o meu pai, a minha mãe, mas nunca tivemos uma resposta. E deixei-me ficar ali ao lado, com a certeza de que já pouco poderíamos esperar. O tempo tinha de facto passado, e tão depressa, que custava a crer que já não podia ser aquele menino que não sabia o que era o medo de ver alguém partir.
Ao despedir-me, já nem esperando alguma reacção, toquei-lhe na mão e disse "Avô, vou embora...". Senti então a sua mão ganhar força, a apertar-me para não me largar, vi uma lágrima correr-lhe pela face. E assim deixei-me ficar mais algum tempo, sabia que novamente ele tinha percebido e recordado algo no meu toque e na minha voz. E momentos desses já não aconteciam tantas vezes como nós queríamos.
A mão que eu segurava era a do meu avô, mas a minha mão, que ele não queria soltar, não era só a minha, era a dos seus filhos, da sua filha, dos netos, das netas e de todos os que de uma forma ou de outra tinham cuidado dele e assim lhe pertenciam em amor. Éramos nós todos quem ele procurava naquele aperto, como que a dizer-nos que sabia perfeitamente quem ali estava.
Da mesma forma nós também não queríamos vê-lo ir, não queríamos nunca ter que largar a mão de quem nos deu e ensinou tanto.
Mas até aí temos afinal muito que aprender. É nesses instantes em que tudo termina que conseguimos realmente perceber aquilo por que temos de estar gratos.
Por isso mesmo ontem revivi estas memórias. E se chorei, ao mesmo tempo sorri e agradeci.
Por isso mesmo ontem revivi estas memórias. E se chorei, ao mesmo tempo sorri e agradeci.
O corpo definha, a vida foge-lhe, acaba-se. Mas a alma e as recordações são eternas. Estas viverão para sempre, nas nossas palavras, e nos momentos que lembraremos ao longo do tempo. E mesmo quando também nós chegarmos ao fim, outros ficarão cá para contar as nossas histórias, como a do avô que levava doces aos seus netos na singela simplicidade de só os querer ver felizes e contentes.
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