quinta-feira, 16 de março de 2017

Quando o bullying homofóbico destrói



Este é um excerto do Deixa-me ser, o livro biográfico que conta toda a atribulada história do meu coming out

Este texto foi lido em todas as apresentações que passaram pelo Porto, Leiria, Torres Novas, Tomar, Covilhã e Lisboa. Escolhi-o sempre para ser lido em voz alta porque é dos meus momentos preferidos do livro, mas é provavelmente também aquele que mais me custou escrever.  Hoje partilho-o pela primeira vez online, como forma de alerta para algo que destrói, que corrompe e mata: o bullying.



"Verão, 2014.
    
         A cidade onde nasci tem um castelo. Lá no alto de uma colina de Torres Novas erguia-se a majestosa construção aos meus olhos desatentos. O olhar caía-me ali mas os pensamentos estavam em plena viagem temporal pelos caminhos da minha infância. O café arrefecia-me e o gás de uma água já morna desfazia-se por entre o seu lento borbulhar. Viajava. Estava ali, fisicamente, mas o meu espírito cedia a outro daqueles momentos em que as memórias se intensificavam, como certezas de que nada vivido poderia ser completamente esquecido, como um chamar dos ensinamentos que a bem ou a mal tinha adquirido. 
        Nessa tórrida tarde de Agosto a  máquina do tempo decidiu-se a parar algures nos 90, na época em que era ainda um rapazinho. Ia a esse pedaço de recordação mais vezes do que quereria e, uma vez estando lá, não tinha como fugir-lhe. Por isso, cerrando as pálpebras e suspirando, deixei-me viver novamente aquele trauma. Eles eram uns quatro ou cinco e rodeavam-me, mais velhos do que eu, mais fortes e com mais certezas de como devia ser a vida. Eu era um miúdo, fraco de corpo, incapaz de integrar-me nos seus modos, por isso atiraram-me para o chão e ameaçaram pontapear-me. Um deles, nem sei já quem, fez sinal para que parassem a violência explícita, para que avançassem apenas com as palavras, como se estas magoassem menos.
        'Gay!'
        'Maricas!'
        'Menina!'
        Chamaram. Repetiram.  Tornaram a chamar.
E depois o meu quarto, as paredes fechadas sobre mim, e uma criança que chora sozinha. Nem entendia porquê, que mal tinha feito ao ser diferente. E ganhava agora vergonha, tornando-me indefeso, impossibilitado de levantar-me e falar com um adulto sobre isso. Dentro de mim havia medo, apenas medo. Provavelmente se falasse com os meus pais, iriam até dar-lhes razão, se era assim o mundo dos grandes, se era só eu quem não sabia expressar-me como eles esperavam, se era eu quem queria brincar com o que não devia e não tinha pudor em tocar nos brinquedos das meninas e torná-los parte dos seus mundos inventados. 
       Palavras, palavras. Não machucavam, pensavam eles. Palavras, palavras. Seriam suficientes para mudar-me, queriam eles. E estas ecoavam, esmurravam-me, atiravam-me ao chão vezes e vezes sem conta. E mesmo quando queria deixar de as ouvir, elas lá estavam graves e agudas, a baixo som, em gritaria, escritas, faladas, em todos os modos e feitios. Então descobri, escreveria. Se não as podia vencer, podia usá-las a meu favor. Até podia transformá-las, inventar-lhes interpretações, torná-las secretas em algum diário que só eu saberia ler. Bastava-me uma caneta e um pedaço de papel. Escrevia, escrevia, e escrevendo fui sonhando. Haveria um lugar para mim nesse mundo em que uma maioria tinha escolhido odiar quem não tinha alguma vez optado por nascer assim numa qualquer oposição do normal. Senti que descobriria alguém que me amasse, que brincasse comigo, que não perguntasse porque era assim, que só quisesse um amigo sem se interessar tanto porque seria ele desigual. 
     E encontrei. Foi exactamente ao recordar os amigos que tinha feito ao longo de tantos anos que aquela lágrima escorreu pela minha face com a mescla de mágoa e alegria de quem não podia apagar o passado e de quem agradecia pelo seu presente. Essa mesma gotícula  carregava em si tantos significados que num só momento ser-me-ia impossível decifrar toda a sua importância, o que levou a que mais uma vez fechasse aquela porta, até lá regressar um dia. Fi-lo hoje, voltei lá com toda a minha força, ao querer, neste último capítulo da história que te vim contar, uma prova de que aquilo a que agora chamamos bullying sempre existiu, mesmo quando não sabíamos dar-lhe um nome inglês que lhe acentuasse a gravidade. Dessa opressão moral, praticada por quem nem sabia atribuir-lhe um valor, vários choros foram e são  derramados, vincando as faces com o peso de todas as injustiças que são ditas e proclamadas em nome de um sentimento que se alimenta do puro ódio de não entender o que não consegue ser igual ao estabelecido padrão."


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Registo da apresentação do livro na Covilhã, aqui rodeado de amigas que sempre me apoiaram em tudo.

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