Poucas pessoas terão a coragem de sentar-se contigo e dizer:
“Preciso de falar com um psicólogo”. Não, falar contigo já não é suficiente.
Falar com os amigos não me chega. Explicar tudo à família também não terá
resultado. Tem que ser discutido com um profissional, alguém que me observe do
lado de fora.
Poucas
pessoas terão o atrevimento de terminar uma vida no entretanto dessa conversa.
Não terminaste uma relação, não, se aquilo que tínhamos era já um viver tão
sóbrio, uma agenda tão repleta de sonhos que se partilharam.
Como é
que eu ia explicar a mim próprio que de repente já nada disso faria parte de
mim? Como assim poderia explicar aos meus amigos que afinal a situação tinha piorado
para além do expectável?
Que eu
andava mal, eles sabiam. Mas que tu tinhas decidido isso, jamais alguém
imaginaria. Andei dias calado. Primeiro chorei sozinho, depois acompanhado, mas nunca consegui exteriorizar de outra forma. As palavras faltavam-me, porque,
afinal, faltava-me tudo, de uma vez.
Se
antes achava que só um psicólogo iria entender onde eu queria chegar, agora
tinha a certeza derradeira de que para não chegar onde eu queria, só esse tipo
de ajuda poderia intervir de alguma forma.
Não
terei achado estranho portanto que num desses dias tenha acordado com dores no
corpo, se a sensação que tinha era a de que estava a ser esmurrado por todos os
lados. Tudo o que ainda era força eram as vozes na minha cabeça, faladas a um
volume extremo, entre gritos e palavras que eu não compreendia. E eu via e sentia o olhar de quem se preocupava comigo, sentia-o cair sobre mim e fixar-se húmido na magreza que eu arrastava. Não podia expressar-me, então, se tanto havia para explicar.
Até que
voltei a sentar-me contigo e, frente a frente, não fui capaz de odiar-te. Como
não existia ódio? Como? Se me apetecia destruir-te e arrancar-te tudo, nem uma
lágrima consegui verter, nem uma frase carregada, nada.
Tinha
então chegado a um estado de apatia tão intenso que foi nesse momento que temi
não ser capaz de voltar a ser alguém. Pois “eu” é que não era ali, certamente.
Perdi
as viagens combinadas, os projectos em comum. Perdi tudo o que tinha
programado. E já não entendia como seria possível programar-me de outra forma.
Se a ausência do teu amor era isso, o que seria a total falta do meu amor
próprio quando chegasse ao ponto de assim sucumbir?
A
resposta chegou depressa, no dia em que empacotei todos os pedaços da nossa
vida. Fi-lo de forma leve e vagarosa, e no processo nem parecia sofrer demasiado,
mas quando voltei atrás e vi o meu quarto vazio, testemunhei na carne o maior
sentimento de perda que até aí nunca tinha experienciado.
Os
olhos arderam-me ao chorar com tanta violência, faltou-me o ar até me doer o
peito, até praticamente sufocar entre soluços e lágrimas que corriam
descontroladas. Se disser que senti que ia morrer, não é exagero nenhum, pois a
minha visão toldou-se, as minhas pernas tremeram e senti que tudo à minha volta
estava a esvair-se lentamente enquanto fiquei agachado contra uma parede fria.
Estava sozinho, sem alguém que me socorresse, por isso não pude senão deixar-me
ficar assim. O meu coração batia tão depressa que sentia o sangue aumentar-me
as veias e a dor a dilatar-me todo por dentro. E de certa morri aí.
Foi
assim, no entanto despedaçado, que tive que voltar à vida. Esperavam de mim que
eu continuasse. E assim forcei-me a isso.
Celebraria o meu aniversário daí a umas duas semanas. E no secretismo de não desistir,
havia um projecto que esperava que eu avançasse. Foi esse projecto que veio de
certa forma salvar-me. Foi ele. O livro.
Estarias
no lançamento. Lembras-te?
A
primeira dedicatória seria assinada com o teu nome.
Não
foi.
Não
estiveste.
E nunca
senti que devias lá estar.
Se
naquele dia morri, num sentido mais ou menos figurado, noutro dia nasci. E a
culpa, para o bem do mal, foi tua.
Sem ti
não teria acontecido. Mas contigo, muito menos.
De
início senti raiva por não conseguir odiar-te, mas depois percebi que a maior
forma de deixar-te para trás era, metaforicamente, abandonar as amarras que
poderiam ainda prender-me à imagem que tinha perpetuado de ti: aquela ideia de
que eras o ar que eu respirava.
Essa
imagem continua lá. Numa qualquer linha temporal paralela, nós contínuamos
juntos e eu nunca disse que precisava de algum tipo de ajuda externa. Nem eu
tive essa audácia, nem tu tiveste aquela cobardia.
Mas na
linha real da vida, eu estou num lugar em que jamais estaria se não
tivesse tido um dia a coragem de testar
a tua dedicação a mim, ainda que o tenha feito de forma totalmente
inconsciente. Imaginava lá que fugirias na presença da mínima dificuldade.
Desmentiria isso, aliás, se alguém com poderes de adivinhar, o futuro, viesse jurá-lo a pés juntos.
Lembro-me
de ter de facto falado contigo sobre isso e de teres dito que seríamos para
sempre amigos.
Mas
lembro ainda mais que, há uns anos atrás, quando decidi dar-te um beijo ao
descer a rua, sem medo, não foi porque queria ser teu amigo. Mas sim porque
quis provar-te que eu tinha entrado na tua vida para a mudar drasticamente. Recordas-te que esse gesto ‘anormal’ foi estranho para ti, certo?
Eu só
não sabia que, egoísta, a única mudança aconteceria afinal comigo.
Talvez
eu tenha apenas projectado um tipo de amor que nunca saiu de mim e que tu nunca
recebeste.
Talvez
eu tenha sido o culpado.
Talvez
um dia possa entender e perdoar a ti ou a mim. Ou condenar-nos aos dois.
Talvez alguém saiba até vir a explicar-me isto
de haver tanto início na palavra fim.
Força Filipe! :(
ResponderEliminar" Primeiro chorei sozinho, depois acompanhado, mas nunca consegui exteriorizar de outra forma. As palavras faltavam-me, porque, afinal, faltava-me tudo, de uma vez"
ResponderEliminar||||||
Adorei
Obrigado pelo comentário, João Eduardo! :)
EliminarMuito bom. Gostei de ler.
ResponderEliminarAmei ! Nem tenho palavras para te dizer o quanto me sinto solidária contigo ! Enfim...
ResponderEliminar"Talvez eu tenha apenas projectado um tipo de amor que nunca saiu de mim e que tu nunca recebeste"
ResponderEliminarVerdade, a grandeza do sentimento é sempre parte de nós e na sua genuínidade ela não se transfere como um download... Pode é ser ou não percepcionada pelo outro mas é algo que habita em nos com todo o seu valor e não há lugar à culpa, mas sim à vivência de toda essa aprendizagem que tem sempre uma razão de ser... E assim seguir...
Ora aí está uma grande verdade. "A grandeza do sentimento habita em nós com todo o seu valor". Adorei a frase! Obrigado pelas palavras! *
Eliminar