domingo, 29 de outubro de 2017

17 HORAS na sala de espera do hospital... mas o SNS funciona!

imagem roubada do pixabay, não é uma imagem real.



Por volta das 10 da manhã decidimos que era melhor ir ao hospital.


Não vou referir o nome dos dois hospitais onde fomos, para manter algum respeito pelos visados. Não vou entrar em detalhes do problema que lá nos levou, para manter a privacidade do doente, que neste caso não era eu.

Fui acompanhar. "Graças a deus", como diria a minha avó.

E eu nem sou religioso, mas acreditem que neste longo dia estive muito perto de me tornar crente. E fica o último aviso: o sarcasmo é algo bem presente neste texto.

Chegamos à porta do hospital, saio do carro e gentilmente peço uma cadeira de rodas para transportar o doente, pois este não conseguia caminhar. Primeira resposta alarmante do dia: "Não há cadeiras de rodas agora".

Como assim... não há?

E a partir daí aprendi que muitas frases começariam por "não há" a partir desse momento.

Depois lá houve, lá se achou uma cadeira e lá se levou o doente para uma sala de espera. O normal. Pouco menos de uma hora à espera para a triagem... depois de ter insistido um pouco na gravidade do caso. Eu podia ficar sempre ali dentro, como acompanhante, o que se justificava mais do que inicialmente pensara. Passam 2 e 3 horas. Médicos? Não há?

Nem por isso. Por acaso nesse dia acontecia a greve dos médicos, para complicar o que já complicado seria. Mas isso nem me chateou tanto visto que por muito que isso me afectasse no momento, estava perfeitamente consciente de que a classe tem que fazer algo para melhorar tudo isto.

Chegamos ao doutor. Muito atencioso, examina isto e aquilo, e por fim diz-nos que será melhor encaminhar o doente para outro hospital da região onde poderá fazer exames mais específicos. Mas entretanto o doente fica por ali para levar algum medicamento.

Agora uma pausa. Na minha lista de possíveis profissões, tenho a certeza de que a de médico/enfermeiro ficaria mesmo no fundo, riscada. Sou tão sensível a estas cenas de agulhas e sangue que nem vejo Anatomias de Greys e afins, só para terem uma noção. Então agora imaginem a felicidade de estar fechado num hospital a assistir a isso tudo e rodeado de pessoas em sofrimento. Claustrofóbico e horrível. Mas a alegria de ali estar só aumentaria a partir daí...

"Desculpe, não tem uma maca para deitar o doente?"

"Não há macas... estão todas ocupadas".

"Ok..."

Passado algum tempo lá vem uma maca. 

"Desculpe, não sei se é pedir muito... mas o doente está ali deitado sem uma almofada, por acaso não seria possível..."

"Não há almofadas... se houvesse já lhe tinha dado".

Respiro fundo. É talvez hora de almoçar. Vou às máquinas automáticas (não havia um bar ali). Outra desilusão. Comida super mega ultra industrial cheia de açúcares e cenas maléficas. Sandes de fiambre, queijo e fiambre, carne, carne, carne, carne, carne. Desisto, como uma de atum que sabia a 2 semanas e meia. 

Já me apetece vomitar com os cheiros. Ando para trás e para a frente no corredor entre as longas esperas. Entretanto já são 4 da tarde e vem uma enfermeira muito antipática dizer-me (ou gritar-me): "Ou está cá dentro ou está lá fora, não pode andar aqui a passear..."

"Claro, porque hoje eu até nem tinha mais nada do que fazer senão vir passear para o hospital." - e viro costas, para não me irritar. Percebi muito bem o que queria dizer, mas talvez pudesse usar um tom mais agradável. Por momentos odeio todos os enfermeiros do mundo, mas logo a seguir vem um que me faz voltar a amar e a admirar esta gente. Amável, atencioso e até divertido. Uma luz inesperada... antes da tragédia.

"Não há ambulâncias". 

Estava a dizer-me que não havia ambulâncias para levar o doente até ao outro hospital? Sim, sim, estava. Então a solução passa por ficar ali e fazer mais tratamento. O doente entretanto melhora um pouco ou pelo menos já não sente tantas dores com o efeito dos medicamentos.

Passa o tempo. Vou lendo um livro que por acaso me lembrei de levar, já conhecendo estes atrasos e velocidades do sistema. Comecei a lê-lo nesta manhã (e já vão perceber porque estou a frisar isto). Falo com as velhinhas simpáticas do lado, vou conhecendo um pouco dos problemas de cada pessoa que entra e sai. Vejo gente chorar em desespero e por momentos emociono-me também. Já não sei como estar sentado ou como estar em pé ou como falar ou como fechar os olhos. Apaga-se o telemóvel, vai-se a bateria, fico com menos uma distração. Resta-me observar e esperar.

"A ambulância vai demorar muito?"

"Há pessoas à espera há 3 horas..."

TRÊS HORAS?! Mas é que nem pensar. Pergunto se posso transportar eu o doente sem perder o direito a dar entrada no outro hospital como se fosse na ambulância e o médico diz-me que sim. Podemos ir, porque será mais rápido. No entretanto ouço-o falar ao telefone e desabafar: "Não há condições para trabalhar aqui. Não há".

Mas... se até aí eu achava que estava nos confins do inferno... não estava mesmo preparado para o que ia encontrar a seguir.

Meio hora a conduzir até ao segundo hospital. Entramos. E o que vejo é algo muito semelhante a um cenário de guerra, um daqueles cenários dos filmes catástrofe... com macas espalhadas pelos corredores, sofás "cama" a improvisar lugares para doentes se deitarem, outros em pé. Não há cadeiras suficientes. Familiares e acompanhantes amontoados, encostados pelas paredes fora. O caos. 

E nós pensávamos que aqui tudo seria mais rápido, visto termos já sido enviados pelo outro médico, mas estávamos muito bem enganados. Mais triagem. Mais espera. Mais desespera. 

São 10 da noite. Forço-me a comer mais qualquer coisa intragável da única máquina que tenho ali perto. E é aí que sinto que já estou a perder a paciência para tudo, mas já nem os gritos ou murmúrios de outros doentes em sofrimento me fazem impressão. 

É quase meia-noite quando finalmente se consegue chegar a uma outra médica.

E aqui vão os elogios para todos os profissionais por quem nós passámos neste dia, porque é impressionante tudo o que fizeram e o que quiseram fazer mesmo sem terem meios ou condições para isso. É realmente de pasmar quando percebemos como esta gente trabalha e faz tudo num ambiente tão caótico, tão cheio de tantos não há, tão... precário.

Mas fizeram tudo. Não escapou um único exame. Por momentos pensei que nos mandariam embora sem respostas, mas não. Quiseram testar tudo, ter a certeza de tudo.

Talvez por isso a fila de espera para o último e derradeiro exame fosse tanta. "Pelo menos mais umas 3 ou 4 horas à espera pelos resultados... porque não há técnicos suficientes para tantos pedidos" - disse-me uma auxiliar, que me aconselhou depois a ir-me sentar e descansar na sala de espera que a esta hora já começava a ficar deserta.

Fiquei eu e outra família que aguardava o mesmo. Deitei-me nas cadeiras para tentar dormir um pouco. Era uma da manhã (hey!). Nem 30 minutos resisti. Era impossível descansar ali, com as costas a partirem-se ao meio. Leio mais um pouco e entretanto termino o livro que tinha começado nesse dia. Apeteceu-me ir escrever no livro de sugestões: "O Serviço Nacional de Saúde devia fazer qualquer parceria com o Plano Nacional de Leitura".

Na sala de espera ecoa a voz irritante de uma daquelas apresentadoras dos programas de jogos por telefone que se prolongam pela madrugada.

E nisto são 4 e tal da manhã. Fecho os olhos, ouço uma voz: "Vá para casa."

"Hmm?!"

"Vá para casa. Os resultados do exame só chegam de manhã. Vá, que nós depois ligamos quando puder vir buscar o doente".

Posso ir pelo menos lá dentro ao corredor que parece um hospital militar. O doente dorme num cadeirão que improvisadamente faz de cama, porque NÃO HÁ macas. Despeço-me. Dou-lhe um beijo e alguma força. E preparo-me para fazer o caminho de volta sozinho e cheio de sono. Para não adormecer, ponho-me a cantar as músicas que vão tocando no carro, pois sempre ouvi dizer que quem canta seus males espanta

Nisto relembro que, como por grande ironia, o capítulo final do livro que li naquelas 17 longuíssimas horas retratava exactamente uma paciente que a todo o custo queria fugir do hospital onde estava internada, agredindo médicos, enfermeiros, auxiliares e seguranças no caminho. E por fim ela conseguiu mesmo fugir, acreditam?

Depois relembro um cartaz que li centenas de vezes, porque estava afixado por toda a parte no hospital, e que apelava à não violência contra os profissionais de saúde. 

Mas brincamos? É sério que se precisa apelar a isso?

É verdade que passei duas fases da divina comédia ali, inferno e purgatório, mas no fim só me apetecia abraçar quem lá trabalhava. 

Estive lá um dia. Não invejo quem lá está todos os dias a trabalhar. 

E a mal ou a bem ou muito a mal vá, o serviço prestado foi exemplar. Repito que fizeram tudo, mas mesmo tudo para que não saíssemos dali com dúvidas. Exames atrás de exames, questões atrás de questões, mesmo quando as respostas demoravam.

E é por isso que digo, sim, o Serviço Nacional de Saúde funciona... mas talvez devesse funcionar melhor para a força matriz que o faz andar.

Entendam. O "SNS português está entre os quinze melhores da Europa, à frente do inglês e espanhol". Não estou a inventar, quem é o diz é a notícia de 30 de Janeiro de 2017 no Jornal Económico (podem ler aqui). 

E só pode estar mesmo entre os melhores, porque com condições por vezes tão precárias, tão complicadas, com tanta falta de material e etc, só pode mesmo ser dos melhores para ainda assim conseguir dar tanta resposta a todos os nossos problemas. 

E já agora, ficou tudo bem. Não era nada de grave, mas (e repito, repito e repito) não nos deixaram sair de lá sem essa certeza bem vincada.


Não há nada que pague isso.




sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Marraquexe: uma coisa que amei e outra que detestei [ Aventura em Marrocos, PARTE II ]



Depois de resolvido o drama inicial (que contei aqui), saímos finalmente para as ruas de Marraquexe à descoberta da cidade.

O nosso primeiro objectivo era chegar à Medersa Ali Ben Youssef, depois de vaguearmos por algumas ruas repletas de pequenas lojas e comerciantes ávidos para nos venderem lenços coloridos e outras coisas tipicamente marroquinas. 

Marracache.

Pelo caminho ainda compramos um lenço lindíssimo para a nossa mãe enquanto fazíamos geocaching... porque Marroquinos gonna be Marroquinos e a cache estava escondida dentro de uma loja (esta da foto). A senhora vendedora, sentada à porta, fez-nos logo sinal de que era ali, quando nos viu meio à procura do objecto. E obviamente que o objectivo deles é fazer negócio com isso e o senhor vendedor, que estava lá dentro, fez-nos então um "desconto especial para geocachers". Mas... como não amar isto?


E da Medersa o que posso dizer?

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Esta é uma antiga escola onde ensinavam o Corão (ou Alcorão) e é um lugar absolutamente fascinante por tudo o que representa na cultura islâmica ou muçulmana, passando também pela história de Marrocos e pela arquitectura visualmente arrebatadora que podemos encontrar pelas várias salas e pátios do extenso edifício. Podemos visitar os quartos onde ficavam os alunos e assim perceber melhor como se vivia ali. Fiquei absolutamente encantado.

Pagámos 10 dirhams (cerca de 1€) para entrar. É super barato!  E por todos estes motivos este local leva um: Obrigatório visitar! 

As fotos de resto falam por si.

Apaixonado! Amei!

Depois disso seguimos para o almoço e aventurei-me a comer pela primeira vez tajine de legumes. Tajine é um prato típico marroquino e pelo que percebi tajine é mesmo o nome da panela de barro onde são cozidos e servidos os legumes (e a carne para quem optar comer assim). Os legumes e o que leva dentro acaba sempre por variar um pouco. Pelo menos nunca comi um tajine igual nos dias que se seguiram. Para acompanhar... sumo de laranja natural, pois parecia quase obrigatório bebê-lo numa terra onde este fruto é rei. E ainda bem, porque é um hábito muito saudável e... delicioso!

O almoço!


Dedicamos a tarde a explorar as ruas e cruzamentos dos souks que conduziam à praça central da cidade. Os souks são basicamente muitas lojas, tendas e tudo o mais onde se consiga enfiar algo para vender... copos, souvenirs, frutos secos, panos, etc. Vi literalmente "lojas" que eram o espaço da parede entre uma loja a sério e outra (não mais que um metro e meio). E isto foi-me confirmado por um dos vendedores quando perguntei até onde ia o seu espaço. Só rir! Mas aqui vale tudo para fazer alguns trocos. Por acaso não achei que nos souks fossem muito insistentes para vender, apesar de termos sempre alguns que nos chamavam para "só ver". 

E chegamos então à praça Jemaa el-Fna e à minha primeira e única desilusão. A praça é bonita e histórica, entenda-se. Mas daí a ser parte da lista de Património Mundial da UNESCO...
Bem, não gostei do ambiente da praça no geral. Os músicos tradicionais ao vivo? Giro. Os encantadores de serpentes? Giro ver no primeiro impacto. Depois torna-se aborrecido quando literalmente andam atrás das pessoas com as cobras na mão para sacarem dinheiro por fotos (não podemos nem fotografar as cobras de longe sem que peçam logo moedas). Tive mesmo que fugir de um. 

Os homens que vêm com os macacos para cima de ti? Horrendo! Os macacos estão em sofrimento, em jaulas, magros, com uma aparência horrível. Um dos homens pegou-me na mão para eu tocar no macaco e obrigou-me, diga-se, mas de volta só levou um berro de "NÃO! NÃO QUERO FAZER ISSO!" e dinheiro... nenhum, apesar de ter pedido, claro! Nem vou falar das chatas e enfadonhas senhoras que querem fazer-te tatuagens de henna a cada cinco passos que dás...

Percebo o valor histórico da praça. Achei icónico ver ali tanto comércio, tanta vida e principalmente ouvir os sons típicos e os chamamentos para a oração num lugar com séculos de história, mas são os comerciantes e as suas vendas extremamente agressivas e invasivas que atribuem àquele lugar uma carga bastante negativa. Talvez a UNESCO queira rever alguns conceitos no que diz respeito à explícita exploração daqueles animais, só para começar...

não muito longe das cobras e macacos, a mesquita.


Depois disso, caminhando alguns metros, chegámos felizmente à Mesquita de Koutoubia e aí sim vale a pena sentar-se um pouco e respirar a tranquilidade, principalmente no jardim nas suas traseiras, onde por acaso naquele momento não havia praticamente ninguém. 

Foi aí que me voltei a ligar a Marraquexe, foi aí que não deixei que o fascínio se perdesse.

E no dia seguinte esperavam-me os momentos mais arrebatadores numa longa viagem até ao deserto... mas isso vou contar-vos na Parte III desta aventura.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Marraquexe, 23:17h: sem um quarto para dormir [ Aventura em Marrocos, PARTE I ]

fotos da Riad onde dormi... inesperadamente.


Primeira vez em Marrocos. Era já tarde, perto das 23h, e eu e a minha irmã tínhamos acabado de chegar a Marraquexe, depois de uma pequena escala em Casablanca. À porta do aeroporto Marrakech-Menara esperava-nos o nosso transfer, uma espécie de táxi mais moderno que nos iria levar até à nossa Riad (casa tradicional marroquina que funciona como um hotel).

Simpático e conversador, o nosso motorista foi falando connosco no seu inglês não perfeito mas compreensível e levou-nos pelas avenidas mais glamourosas da cidade até à zona da Medina, que é o que podemos chamar de zona antiga, o coração de Marraquexe envolvido por uma muralha extensa que separa as duas realidades contrastantes: a riqueza e a pobreza. Aí foi onde percebi logo que estava num cenário completamente diferente, mas também mais interessante. Motos, carros, bicicletas e até carroças avançavam ao mesmo por entre ruas diminutas, em movimentos arriscados e doidos que me deixaram pasmado.

E foi num parque de estacionamento rodeado por essa estonteante confusão que o nosso transfer parou para nos deixar. Mas antes disso o condutor perguntou-nos se sabíamos ir até à rua da Riad e nós dissemos que não (só sabíamos que era numa rua ali perto e usar internet ou o goggle maps estava fora de questão, visto que se pagavam 12€ por Mb... mas mesmo a sério!). Então ele ligou para a recepção da Riad e pediu para enviarem alguém para nos vir buscar. Assim ficamos à espera. Passam mais de 10 minutos. Ninguém vem. Ele volta a ligar e começa uma pequena discussão em árabe. Só consegui perceber pelo tom, porque percebo nada mas absolutamente nada da língua. De repente passa-me o telemóvel e diz-me alguém do outro lado num inglês muito mas muito mau que a nossa reserva naquela Riad tinha sido cancelada porque já eram 23:15h. Já não tínhamos um quarto para dormir ali. SOCORRO! Tentei manter a calma ao telefone, falando num inglês muito pausado, para me fazer compreender. Lá lhe expliquei que no site e nos documentos da reserva estava escrito que o check-in podia ser feito até à meia-noite (aliás esse tinha sido um dos motivos para escolher aquele alojamento, sabendo que já chegaríamos tarde). Mas o homem diz-me que seria impossível ficar ali. O quarto já estava ocupado com outros hóspedes. Como assim?!

A minha irmã olha para mim em pânico e eu em pânico estava. Olhava à volta e só via um mundo completamente desconhecido, de ruelas escuras e cheio de gente que conduzia de forma doida. Como é que era suposto aventurar-me por ali com as nossas malas pesadas e ir ainda à procura de um alojamento àquela hora?!  O homem desliga depois de falar com o condutor outra vez (em árabe). Nisto eu pergunto-lhe se por acaso não conhece outra Riad que ainda aceite check-ins àquela hora. Ele diz-me que talvez sim, que tem de fazer umas chamadas, mas diz-me para esperar mais um pouco porque o outro vai tentar resolver a situação... encontrando um sítio para dormirmos pelo menos nessa noite.

E aqui faço uma pausa para elogiar o nosso condutor, que foi absolutamente um anjo, nunca nos deixou e ainda me tranquilizou. Lá chega um rapazito da Riad para nos levar até lá, mas eu digo-lhe logo: "Só saio deste carro se me confirmares aqui que tenho um quarto onde dormir, senão vou já para outro hotel". Ele diz-me que sim, que tinha. Peço ao condutor para o confirmar em árabe, não fosse ter perdido algo na tradução, e ele confirma que sim, posso estar descansado: já há um local onde ficar.

Damos uma gorjeta ao motorista, embora estivesse escrito na reserva para não o fazer, mas nesta situação eu estava já disposto a dar-lhe o mundo. 

Lá seguimos o rapaz, que pega na mala da minha irmã e nos encaminha pelo caos da tal rua onde ficava a Riad. Pelo caminho, entre os "Ah Portugal" e os Cristiano Ronaldo, pergunta-me se não tenho sede e se não quero comprar água numa das muitas lojas da rua, que obviamente seria de algum amigo seu... pois faz questão de parar à porta (eu já sabia destes esquemas engraçados que os marroquinos usam para venderem tudo e mais alguma coisa numa espécie de antiquado cross-selling). Mas disse que não, mesmo só porque queria era resolver aquilo o mais rápido possível. Bem... lá chegamos a um local, ele abre uma porta, subimos umas escadas e está uma senhora marroquina nos seus 60 anos vestida com um tipo de pijama (claramente tinha saído da cama agora), ao seu lado está uma rapariga nos seus 20 e um homem que então percebo ser aquele que falou comigo ao telefone. 

Uma "sala" da Riad para onde nos levaram. Era aqui que se fazia o pequeno-almoço. 


Não sei como, mas não odiava este homem, mesmo sabendo que tinha cancelado erradamente e sem razão a nossa reserva, causando todo aquele transtorno, mas nos seus olhos havia qualquer misto de incompreensão e confusão, que não me deixaram tratá-lo mal. Bem... se ao telefone o seu inglês era sofrível, acho que ao vivo ainda era pior. Tentei explicar que a agência de viagens tinha pago tudo para a reserva, que àquela hora não podia falar com ninguém, que precisava de pelo menos wi-fi para puder enviar imediatamente um e-mail a explicar tudo. E mal ou bem lá nos entendemos. Tentámos entrar em mais detalhes sobre a reserva, mas ele não conseguia mesmo compreender o inglês para além de algumas frases-chave básicas. Ainda falou algum francês e eu compreendi, mas para mim era extremamente difícil responder-lhe nessa língua. Então o nosso problema linguístico era tremendo.

Lá me diz onde vamos dormir, vejo o quarto, era bom. E é aí que percebo que de facto aquela não era a nossa Riad original, mas que pertencia à senhora e raparigas que ali estavam. Também elas só falavam árabe ou francês. Ao pedir-me os passaportes para um rápido check-in, a rapariga soltou um tímido "Sorry" por toda a situação e os seus olhos foram tão explícitos, que tive que dar um passo atrás e relaxar-me aceitando aquilo... e pronto. Sim, perante essas dificuldades, aceitei dormir ali e... na manhã seguinte logo se via. E claro que no entretanto ainda tive que pagar 200 dirham (20 euros) para dormir ali porque... MARROCOS e marroquinos! A sério, o descaramento e os pedidos de dinheiro não têm limites, mas... como não amar isso?  :D Obviamente que paguei na condição de ter esse valor devolvido pela agência (que já foi devolvido e até em maior quantia, depois desta linda situação). 

Entro no quarto e só me dá para rir. Não estava a acreditar que tinha apenas acabado de chegar e já tinha tanto para contar. A minha irmã estava mais irritada, com completa razão, e diz-me: "Não tenho vontade nenhuma de me rir", mas isso só me fez dar mais gargalhadas porque eu tinha passado a semana anterior a perguntar-lhe "Mana, tu tens a certeza de que queres ir viajar sozinha comigo? Olha que acontecem sempre cenas...".

MAL EU SABIA! Mal eu imaginava o que estava para vir. 

E eu dizia isso porque depois da história no Hostel em Napoli, depois de me perder na Eslovénia e de quase me ter afundado no mediterrâneo, etc, etc, eu já esperava tudo... mas aparentemente não esperava isto. 

O que nos valeu foi que aquela temporária Riad era muito bonita, como se pode ver pelas fotos. 

À porta de um dos quartos. Aqui ainda não tinha sido nada resolvido, mas porque não tirar umas fotos como recordação? :P


E pronto, no dia seguinte acordámos às 6 da manhã com todas as mesquitas da cidade a ecoar as vozes do Almuadem (chamamento muçulmano para a oração). Por toda Marraquexe se ouvia "Alla hu Akbar... Allaaaaaaa huuuuu Akbar", que significa "Alá é grande!". E realmente não sei se foi Alá ou a força de acreditar, mas a verdade é que nessa mesma manhã tomei tranquilamente o meu pequeno-almoço de chá verde e smemen com mel (uma espécie de crepe marroquino) e tudo ficou resolvido com a agência em poucos minutos, pois conseguiram fazer com que nos transferissem para o nosso alojamento, que na verdade era uma outra Riad... ainda mais bonita do que esta. Mas juro... naquela fase estava até já disposto a dormir no deserto debaixo de uma pedra. 

E agora recordo ainda as palavras simples mas sábias do nosso magnífico condutor quando lhe disse que já há muito muito tempo queria visitar o seu país. Respondeu-me então ele assim no seu inglês acentuado com o tom árabe que confere a tudo um significado ainda mais profundo: "Now your dream came true" / "Agora o teu sonho realizou-se".

Bem... por pouco não era um pesadelo, não é? Mas também se fosse tudo certinho, que aventuras teria para vos contar?

E foi entre essa questão e risos ainda incrédulos que saímos para o caos da manhã quente de Marraquexe prontos a descobrir uma das cidades mais fascinantes onde já estive. Mas disso falarei noutro post, quando vos contar como afinal me apaixonei por este lugar que inicialmente me quis receber tão mal.


O nosso improvisado amigo, hóspede frequente da Riad que nos alojou por uma noite. Chamei-lhe Youssef.