terça-feira, 30 de abril de 2019

Berlin b964: techno química underground



Não é que neste caso haja um dress code, mas escolho vestir só preto, porque, digo-lhe, "combina com o meu estado de espírito".

Ao local não posso chamar bar ou nightclub porque talvez seja uma mistura ambígua dos dois. 

A entrada é fácil, embora haja alguma selecção, e o espaço não é muito extenso. É escuro, muito escuro, quase labiríntico, quase um bunker, quase um esconderijo que sobreviveu a alguma guerra. Os meus olhos demoram a habituar-se à escuridão, pois na rua ainda havia alguma claridade. Lentamente deixo a luz esvair-se por completo.

O meu amigo pergunta-me se quero beber uma cerveja e eu digo que sim. 

Quando já vejo, a primeira impressão é que ninguém se importa contigo, como estás vestido, quem és, com quem entras. Há gente de todos os tipos e feitios.

A techno marca um beat pesado que faz estremecer a parede onde me encosto. E com uma leve surpresa é um som que acalma e não enfurece. 

Música electrónica não é o meu forte, mas faz todo o sentido aqui. A ausência de vozes que nos distraiam, permitem-nos falar e não demora muito até eu decidir avançar para o spot onde uma luz vermelha ilumina o chão e as paredes em várias rotações arrítmicas. As luzes são só vermelhas. Tudo é vermelho e preto. Não há outra cor. É o lado negro de uma cidade que vibra por isto. E eu vim aqui para entender porquê. 

Não passou nem meia hora e já sinto que conhecemos toda a gente, mesmo sem nos falarmos. Há algo sedutor num local que parece proibido, mas onde tudo é permitido. Há algo fascinante num local que não se identifica com x ou y, que não parece ter um código de conduta, que não é masculino nem feminino, nem rico nem pobre.

Ninguém tem de o dizer, basta observar. Há um rapaz que vem falar comigo. E é aqui que me apercebo de que o volume da música foi adequado para nos permitir interagir. Fala mal inglês e eu não falo alemão. Por isso a conversa não flui. Quando se despede de mim e tenta sorrir, vejo tudo nos seus olhos. A alegria e o entusiasmo, mas também uma alma apática, desprendida e solta. Há alguma substância que o mantém vivo. Qual, não sei. 

Há uma espécie de jaula no meio da pista, ou antes uma grade que faz de conta ser uma prisão. 

É tão simbólico para mim que arrasto o meu amigo para lá, colocando-nos separados. Um de cada lado. O meu sorriso malicioso confessa logo tudo. Estranhamente o metal nem é frio quando o agarro com as mãos fingindo ser um prisioneiro. E é aí que acontece o beijo, com uma grade que nos separa. Parece uma cena de um filme indie sem grande orçamento. Parece uma bonita metáfora para as nossas existências. Tenho de escrever sobre isso mais tarde. Começo a imaginar as primeiras palavras... mas a techno que nos envolve é tão forte que me perco nos meus pensamentos. Há nisto algum tipo de amor instantâneo, um sentimento subitamente tão forte que causa arrepios nos nossos poros, numa pele agora tão sensível ao toque. Há mesmo qualquer coisa de química nisto, tanto no sentido científico quanto no figurado.

E ninguém quer saber. Ninguém questiona. Ninguém deixa as suas danças para se importar. 

É como se toda a liberdade do mundo estivesse ali e pela primeira vez em muitas semanas sinto os meus músculos relaxar e uma espécie de felicidade que não me visitava há demasiado tempo. 

Antes de entrar disseram-me: "aqui dentro cada um faz o que quer...".

E eu só acrescentei: "...e ninguém é obrigado a nada"

Estava certo.

Quando volto a sair para a rua já não tenho a certeza se a luz violeta no horizonte é o amanhecer ou ainda o crepúsculo. Depois caminho sozinho em direcção à estação e meto-me num comboio que me leva a casa. 

A minha rua não é a mesma. Está diferente. Demoro algum tempo a perceber porquê.

Só entendo tudo quando a minha cama me abraça e olho uma última vez pela janela para ver as cores do céu antes de fechar os olhos.

Somos corpos vazios em caixas rectangulares que se conectam por estímulos exteriores e impulsos eléctricos que nos dão vida antes do cansaço nos derrubar. Tento sorrir ao adormecer. O meu corpo ainda vibra com o bass daquela música estranha que me embala. Deixo-me ir. Quando acordar saberei melhor quem sou. 











sábado, 13 de abril de 2019

Como cheguei aqui... e como foi o curso na easyJet?




Como cheguei à easyJet?

Esta história começa há muito mais tempo do que se imagina. Em 2017 trabalhava num hotel na ilha da Sardenha e juntamente com um grupo de amigos tentei o teste online (o primeiro passo) para me candidatar como comissário de bordo (cabin crew). Falhei esse primeiro teste. E aqui fica a primeira dica. NUNCA façam esse teste com outras pessoas e no meio de barulho e confusão de outras conversas. Façam-no sozinhos, concentrados e vão ver que é muito melhor.

Como sou muito teimoso, não desisti. Aqui fica a segunda dica. NUNCA desistam de ir atrás do que vocês querem realmente.

Entretanto tinha de esperar mais 6 meses para candidatar-me outra vez e  surgiu uma oportunidade de entrar na Ryanair. Fui à entrevista, passei e atirei-me a isso com toda a garra.

Em Abril de 2018 voltei a candidatar-me à easyJet. Na altura ainda só estava há um mês na Ryanair... mas o meu objectivo sempre foi só ganhar experiência e procurar algo... diferente. 

O convite para ir a um "open day" da easyJet só chegou bem mais tarde, em Novembro desse mesmo ano.

Esse dia aconteceu num hotel em Berlim e depois de passar em todos os testes de grupo, individuais, online e na entrevista final, foi-me oferecido um lugar na easyJet

No dia em que chegou a notícia estava a operar um voo com a Ryanair e foi depois de aterrar que abri o mail e vi que tinha sido seleccionado. Primeiro gritei eufórico. Depois chorei de felicidade. Afinal, tanto tempo passado, tinha finalmente conseguido o que queria. 




Como foi o curso de cabin crew?

Digamos que para quem já tinha feito um curso de comissário de bordo antes, não foi propriamente uma novidade. Mas existem várias diferenças. Começando pelo mais óbvio... os aviões. Antes trabalhava num Boeing 737 e passei para a família Airbus, onde aprendi as especificações para operar voos em Airbus 319, Airbus 320 e 320-186. Parece simples, mas acreditem que todos têm configurações diferentes e o mais difícil foi esquecer tudo o que aprendi antes no Boeing.

Na easyJet o curso teve a duração de 3 semanas e aconteceu no aeroporto de Gatwick em Londres. A companhia paga-nos o voo até Londres, o alojamento (neste caso ficamos no Hilton) e desde o primeiro dia somos funcionários da empresa e estamos a ser pagos enquanto fazemos o curso (maravilhoso, não é?)

Por questões óbvias de segurança não posso dar muitos detalhes sobre o programa do curso, mas posso dizer que as 3 semanas são muito bem divididas entre os temas de Segurança na Aviação, First Aid (Primeiros Socorros) e Customer Service

E temos que estudar muito. Muito. Normalmente as aulas aconteciam das 8 às 17h mas em alguns dias tínhamos alterações no horário. Tivemos 2 dias off e depois outro off, basicamente para estudar e rever matéria. 

Por estarmos na Academia easyJet o curso é muito prático e todos os dias íamos treinar para o simulador, que é basicamente um avião montado só para o curso. Mas os bancos, portas, etc, etc, simulam (lá está) um avião real e isso é excelente para aprendermos onde está o equipamento de segurança, onde são as saídas de emergência, como se combate um fogo dentro do avião, como se entra no flight deck, como devemos agir em caso de descompressão da cabine,  etc, etc.

Essas 3 semanas são muito intensas, principalmente porque passamos muito tempo fechados. E já sei que vão dizer que estou a queixar-me de ficar alojado num hotel Hilton (fancy!), mas acreditem que cheguei a um momento em que já não aguentava aquelas paredes. Safava-se o pequeno-almoço que era brutal. O melhor que já vi em qualquer hotel sem sobra de dúvida. E bem sabemos a energia que era precisa logo de manhã para aguentar tanta matéria.

Tivemos no total 5 exames distribuídos por essas 3 semanas. Dois exames sobre procedimentos de Segurança (Safety e Security), um sobre Dangerous Goods, outro sobre Primeiros Socorros (First Aid) e o final sobre Customer Service.

Quanto aos instructores que tive... só posso dizer coisas boas. Vou levar memórias muito bonitas para o resto da vida. Afinal foram eles que me deram toda a formação e inspiração para fazer o que estou a fazer agora.

Depois de completarmos a formação e passarmos em todos os exames, temos a graduação e esta carinha de felicidade aqui em baixo diz tudo o que palavras não conseguem dizer sobre o que senti nesse dia. Estava pleno, completo, realizado.

É tão bom estar aqui. Dei um passo gigantesco na minha carreira na aviação... e nem eu tinha muita noção do quanto iria ser diferente aqui na easyJet. Mas sobre isso falarei no próximo post.






domingo, 7 de abril de 2019

O meu bairro em Berlim.



Acho que nem podia ter sido de outra forma, mas vim mesmo parar a um bairro muito cool, artístico e alternativo em Berlim. 

Não é que não existam outros bairros mais na onda hipster nesta cidade, como o bonito Kreuzberg (do qual falarei mais tarde)

Mas o bairro de Wedding (lê-se "Ve-ding") é uma mistura única de passado e modernidade, de cultura alemã com cultura turca e de outros países.

Estima-se que 30% da população do meu bairro seja composta por estrangeiros. Muitos são estudantes, de passagem, muitos são artistas e freelancers à procura do sonho alemão. Outros viveram aqui uma vida inteira.

Outros são como eu e caíram aqui por acaso. Não foi nada fácil encontrar uma casa em Berlim e este sítio acabou por ser quase a última hipótese, mas tive sorte porque está bem localizado no que diz respeito a transportes para o aeroporto (onde trabalho).

Pelas fotos já dá para ver. Wedding tem muita cor nos seus edifícios. E também tem muitas casas velhas, mas que a arte urbana tratou de colorir. 

Quando se pensa na história de Berlim, é impossível esquecer que a Segunda Guerra Mundial aconteceu aqui e que a Guerra Fria e o Muro prolongaram anos de tensão e separaram uma cidade brutalmente. 

Esta região fazia parte da zona ocidental, mais concretamente da divisão francesa, e desde que o muro caiu (há 30 anos!) acredito que a reconstrução e transformação destes bairros deve ter sido uma constante. Nota-se que há zonas que ainda não decidiram muito bem se são modernas ou retro. 

Mas é por isso que gosto de viver aqui.

Vaguear por estas ruas num final de tarde de sábado é deixar-se levar pelos aromas fortes da comida dos restaurantes alternativos que estamparam a palavra vegan na porta, é desviar-se de bicicletas e skates que passam acelerados, é reparar nos estilos alternativos de quem passa e chegar a um ponto em que já nada te surpreende, é entrar no supermercado turco para comprar fruta fresca e sair de lá com 3 tipos diferentes de couscous e bulgur, é parar para fotografar prédios da arquitectura moderna do pós-guerra, sentindo que tudo parece ter parado no tempo e depois reparar no café hipster com a bandeira arco-íris na janela e apaixonar-se por esta incrível mistura cultural e de valores.

E isto é apenas uma pequena percentagem de uma cidade vibrante com 3,5 milhões de habitantes.

Ainda haverá tanto por descobrir.

Mas algo já descobri. Mesmo antes de viver aqui, este já era o meu bairro. 




segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Diário de Bordo #7: o jogo recomeça

imagem: flickr


"Ano novo, vida nova" - dizem por aí. 

Talvez eu tenha levado isso demasiado a peito. Ainda Janeiro começou e já estou com os pés na mudança. Deixo a cidade que me recebeu e acolheu nos últimos 10 meses. Deixo o meu local de trabalho, por minha decisão, exactamente um ano depois de ter começado o curso que fez de mim um comissário de bordo.

E deixo tanto mais para trás.

Há uma canção italiana que ouço frequentemente e que, traduzida, diz assim: "Leva-me daqui, se houver um muro demasiado alto para ver o meu amanhã".

E é isso. Mais do que um "ano novo, vida nova", é isso. Não acredito que o calendário nos imponha alguma obrigação de mudar, mesmo que subtilmente, acredito sim que quando sentimos que um lugar ou uma ocupação já nos deram tudo o que podiam dar, quando o tal muro é demasiado alto para nos deixar ver um futuro, aí sim, tenho a certeza de que uma Força dentro de nós faz com que se procure recomeçar.

Há quem diga que só estou bem assim. A mudar. E é verdade que nos últimos 4 anos tenho experimentado muito. E com muito orgulho. Tenho aprendido mais do que às vezes queria, é verdade, pois às vezes até sabe bem aquela confiança de já conhecer tudo e todos no lugar onde se está, mas no meio disso tudo tenho sido exposto a situações completamente novas e desafiantes. 

Lembram-se de 2017? Passei o Verão a trabalhar na Sardenha em Itália. E a expressão "parece que foi ontem" tem muito peso de cada vez que ainda hoje dou por mim a reviver intensamente momentos fortes desse Verão exaustivo. Só que daqui a pouco já lá vão 2 anos e parece que ainda nem tive tempo de me sentar para resolver esses conflitos de uma vez por todas. 


É como se, com o que acontece agora, estivesse sempre num certo modo de comparação em que pensamentos por vezes inofensivos se transformam em verdadeiras lições diárias.

E é claro que sinto saudades disso. Matava-me a trabalhar, sim, mas sinto falta de ser feliz assim. Tal como sinto falta de ajudar as crianças que fizeram parte do meu Projecto de Voluntariado Europeu em 2015/2016. E tal como provavelmente daqui a uns meses sentirei falta do que estou a deixar agora. 

Talvez sentir falta de alguma coisa que me fez feliz por momentos, ainda que por breve momentos, seja exactamente o que procuro.

Como diz outra canção italiana que aqui deixo, é mais ou menos isto:

"La città è piena di fontane 
Ma non sparisce mai la sete 
Sarà la distrazione 
Sarà, sarà, sarà 
Che ho sempre il Sahara in bocca"