segunda-feira, 28 de maio de 2018

Diário de Bordo #4: Cracóvia - um sítio onde regressar



Não só porque foi uma passagem rápida de 3 dias, mas sobretudo pelo seu ambiente único, Cracóvia foi uma cidade que imediatamente me deu aquela vontade de lá regressar para descobrir mais.

Tentarei explicar melhor porquê. 

No primeiro dia cheguei sozinho ao aeroporto de Cracóvia já a meio da tarde, depois de alguns atrasos inesperados com o meu voo. Mas chegar ao centro da cidade foi muito fácil. Ao sair do terminal do aeroporto apanhei o comboio para o centro e em cerca de 20 minutos já estava a chegar ao hostel onde ia dormir nessa noite. 

Ansioso por conhecer a cidade, que pelas ruas que tinha percorrido já me ia agradando, fiz o check in e saí em direcção à Praça do Mercado, mesmo no centro histórico.



Só estas ruas eram o suficiente para me render completamente à cidade, mas é a praça central que rouba todo o protagonismo. Dizem que é a maior praça medieval da Europa e não duvido. É que tem muito para ver e apreciar. De um lado a imponente Basílica de Santa Maria (onde foram filmadas cenas de "A Lista de Schindler"), do outro lado a torre da antiga 'câmara municipal', ao centro uma outra igreja mais pequena (a de São Adalberto, na foto em baixo) e ainda o lindíssimo edifício do mercado (tão bonito por fora como por dentro). E depois todos os edifícios à volta, com uma arquitectura que nos transporta imediatamente para outros tempos. 



Edifício do mercado, que ainda funciona actualmente, mantendo toda a estrutura original da época. Lá dentro é possível encontrar muitos comerciantes de artesanato, por exemplo.

Fiquei algum tempo a apreciar tudo isto, antes de voltar a caminhar pelas ruas que me levaram ao Barbican, à muralha e ao castelo.


O Barbican é um edifício que funcionava como o portão da cidade, sendo assim, juntamente com a muralha, uma protecção contra invasores. Mantém-se até hoje muito bem conservado, como se pode ver pela foto. E o jardim em volta é absolutamente um dos sítios onde devemos passar algum tempo a contemplar o passado. 

Aproximava-se a hora de jantar e depois de caminhar tanto tive a sorte de encontrar, na praça logo por detrás do Barbican um restaurante muito especial. E nas viagens aquilo que comemos tem sempre um papel importante nas memórias que levamos, certo? 

O Glonojad é um restaurante vegetariano, logo perfeito para mim, mas que tem outra particularidade muito interessante. Todos os produtos neste bar/restaurante provêm de quintas e pequenos produtores locais e não tive dúvidas disso quando provei o sumo de cenoura e senti aquele sabor mesmo cru e intenso. A qualidade é notória e os preços são muito apelativos. 

Para além disso tem um ambiente muito descontraído, música de fundo relaxante, e por isso aproveitei para ficar ali a escrever no meu bloco de notas durante algum tempo.

Ali a fatia de doce na foto entrou para o TOP de melhores doces que já comi. Não lembro do nome infelizmente, mas levava leite de soja, romã e amêndoa. De comer e chorar por mais!

 Depois de recuperar energias voltei para as ruas de Cracóvia, agora imersas na escuridão da noite, adquirindo uma atmosfera mais dark e absolutamente fascinante. A cidade parecia ter-se transformado subitamente. E amei isso. Encontrei-lhe outra aura, com os jogos de luzes nos edifícios antigos, ainda mais interessante e misteriosa. E foi envolvido nesse ambiente que adormeci nessa noite.

Mas dormi poucas horas. Estava ansioso pelo dia seguinte e por isso passava pouco das 4 da madrugada e já estava desperto. Surpreendentemente a essa hora já havia uma claridade intensa na cidade. 



Na foto, lateral do Teatro Juliusz Słowacki, um edifício magnífico que se impõe a tudo o que o rodeia. A fachada é ainda mais impressionante. Passei aqui no meu caminho para o autocarro que me levaria à visita a Auschwitz que já relatei aqui. E deste segundo dia podem ler praticamente tudo nesse post. Essa visita foi tão intensa (e dolorosa) que tinha planeado outros passeios pela cidade ao regressar ao fim da tarde, mas já não consegui.

A minha mente estava pesada demais, por isso rendi-me e decidi ficar só pela praça principal à noite e fui experimentar uma sopa tradicional numa feira que estava a acontecer mesmo ali na Praça do Mercado. Sentei-me ali num banco a comer e esta vista (aqui na foto de baixo) era a panorâmica do meu improvisado restaurante. Podia ter melhor? Às 23h, como em todas as horas certas, lá veio o músico tocar trompete numa das janelas da Basílica de Santa Maria. Diz a lenda que durante a invasão mongol um trompetista subiu à torre da igreja para tocar o seu instrumento e avisar a população que os invasores se aproximavam, mas acabou por ser silenciado com uma seta na garganta, morto por um mongol que certamente tinha uma visão muito boa (devia ser primo do Legolas!). Por isso agora todos os dias a todas as horas certas, sempre que o relógio marca o ponto, vem um trompetista tocar o mesmo som em homenagem a esse herói do passado. Um pormenor brutal que enriquece ainda mais a já rica cidade. 



No terceiro dia o meu voo partia pouco depois da hora do almoço, mas ainda me deu tempo para um último passeio pelo centro histórico, onde tomei um pequeno-almoço divinal (e muito barato, novamente!) e terminei assim depois a minha visita almoçando os típicos pierogi de batata e queijo. Fiquei fã!

Ao embarcar no avião de regresso a casa já só pensava em voltar a Cracóvia. Ficou muito por ver. Quero visitar as minas de sal e conhecer devidamente a fábrica de Oskar Schindler (depois de ir a Auschwitz sozinho já não tive forças para aguentar mais isso...)

Tendo em conta que do sítio onde vivo agora, Frankfurt, os voos para Cracóvia demoram cerca de 1h e são super económicos, é mais do que certo de que mais cedo ou mais tarde irei voltar lá para me fascinar novamente.

Termino com o seguinte:: 

Cracóvia é uma cidade carregada de histórias e por vezes de uma História que pesa. Da época medieval e da atmosfera gótica que a noite traz, é ainda mais impressionante perceber como esta cidade conseguiu chegar aos dias de hoje ostentando tanta beleza. Passou por ali um dos maiores horrores da história recente, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial quase destruíram o legado da cidade, mas será por isso que, na escuridão, o centro histórico adquire aquela aura densa que ao mesmo tempo assusta e seduz?


quinta-feira, 17 de maio de 2018

Diário de Bordo #3: AUSCHWITZ, portal do inferno




"Abandonai toda a esperança ó vós que entrais"


Estas palavras estão escritas no portal do Inferno na famosa obra de Dante, mas bem podiam estar escritas à entrada de Auschwitz

Antes de fazer a minha visita ao campo de extermínio nazi fiz um género de preparação. Nas últimas 2 semanas revi os filmes "A lista de Schindler" e "O Pianista". E pela primeira vez li o livro "Se isto é um homem", de Primo Levi, judeu italiano que sobreviveu a Auschwitz e que conta na obra como foi a sua vida (ou lenta morte?) enquanto prisioneiro no campo de concentração. 

Preparei-me, levei uma bagagem cultural já pesada, mas mal eu sabia que não havia preparação possível...

Pelas 8h cheguei a Auschwitz. Fui sozinho. Sem um guia, porque queria mesmo não ter nenhuma distração comigo. Apenas comprei na recepção à chegada um livro guia (excelente, por sinal!) e que fui lendo ao longo dos passos lentos que ia dando. 

Dentro do campo silenciei o telemóvel e só o usei para registar algumas fotos. Assim caminhei sozinho, em silêncio, durante horas. Como companhia tinha apenas uma caneta e o meu bloco de notas, onde fui escrevendo, conforme consegui, alguns dos meus pensamentos que agora aqui transcrevo.




"8:52h:
Já ando pelo campo há quase uma hora. Vou vendo tudo com calma e atenção, leio todas as descrições. Acabei de sair da sala 5 do bloco 4: o bloco do extermínio. Nesta sala podemos ver 'uma das mais chocantes provas do crime' (como está escrito no livro guia que comprei à entrada). Aqui estão expostas cerca de 2 toneladas de cabelos de mulheres judias que foram assassinadas nas câmaras de gás. O cabelo era aproveitado para vários fins, como material de produção de tecidos. Não consegui entrar à primeira tentativa... voltei para trás. Respirei fundo. Quase desisti. Tive que preparar-me para o horror que ia ver. E agora saí de lá e tive que parar uns momentos depois de ter percorrido aquela sala. Sinto-me tremer... mas vou continuar a visita..."

9:37h
Saí agora do bloco 6, que cobre detalhes da vida dos prisioneiros e das crianças que para aqui foram trazidas ou que aqui nasceram (as mulheres grávidas não escapavam à selecção para os campos de concentração). Mesmo depois de tudo o que li e estudei, de todos os filmes e documentários que vi, mesmo depois de aqui estar ainda me parece inacreditável e inconcebível que actos tão cruéis e bárbaros tenham sido feitos pelo homem ao homem. Estou na rua num espaço vazio entre os dois blocos. Impera o silêncio.  

11:21h
Tenho que me controlar várias vezes para não deixar que este sentimento pesado, e de uma estranha impotência, me leve às lágrimas. Já percorri muitos dos blocos onde seres humanos foram torturados e fuzilados sem piedade. Vi os seus objectos pessoais, como roupa, sapatos, óculos e infinitos objectos que lhes foram roubados à chegada. A questão que me acompanha em cada passo é sempre este 'Porquê?'. Por que é que isto aconteceu? Como é que se permitiu que um maníaco ditador levasse avante tanta brutalidade contra pessoas inocentes, contra crianças... sobretudo contra as crianças que choram em desespero na foto de 1942, no gueto judeu Varsóvia, que tenho agora à minha frente. Como? E porquê?





12:04h
Náusea. Uma náusea tão forte que me aperta o estômago e me dá um impulso para vomitar. Foi assim que saí agora da câmara de gás e do crematório, simbolicamente os últimos dois passos da primeira parte desta visita antes de seguir para o campo de Birkenau (ou Auschwitz II). Na câmara de gás há um cheiro que se entranha, um odor nefasto, talvez o próprio cheiro da morte, não sei. Foram mortas ali milhares de pessoas e sente-se de imediato uma extrema energia negativa. Os lugares têm memória. E não perdoam.





13:16h

Birkenau - Aschwitz II

Este lugar deita-te por terra e tira-te todas as forças. Entra-se pelo portão principal por onde entravam os comboios e vagões carregados de prisioneiros (maioria judeus, mas também homossexuais, ciganos, prisioneiros de guerra, etc) e é seguindo essa mesma linha férrea que atravessamos o campo, por quase 1km a pé, percorrendo o mesmo trajecto que seguiam à chegada, passando pelas ruínas das câmaras de gás, à direita e à esquerda, até chegar ao memorial com 23 placas nas 23 línguas principais dos deportados que foram aqui presos e cruelmente assassinados. Li as placas que consegui, primeiro em espanhol, apelam a um grito à humanidade para que nunca esqueça, depois em italiano, aperta-me o coração quando leio a palavra bambini, depois leio em inglês... e não aguentei mais. É uma dor, uma revolta, um sentimento quase novo que não sei explicar, mas que só senti aqui. E a minha única opção é sentar-me num canto isolado e deixar sair toda a tristeza que se apodera de nós aqui. Pela primeira vez quebra-se o silêncio desde o início da minha visita. Choro e não sei por que que choro. Olho para o vasto campo e é desolador mas reparo que junto às câmaras da morte nascem agora algumas flores. Como é possível que num lugar tão horripilante a natureza consiga ainda florescer? Será esta uma espécie de metáfora para as capacidades humanas de superação?




15:27h
Terminei a minha visita e saí pelo portão principal, deixando para trás o arame farpado da prisão... mas nem assim me sinto mais livre. 
Auschwitz é uma experiência aterradora, muito pesada. Caminhei durante 7 horas, com poucos descansos, caminhei, horas, caminhei, mas não é o corpo que me dói. 
É cá dentro, esta impressão que carrego. É o desconforto que me aperta. 
Não tenho dúvidas de que se é uma pessoa diferente depois de passar por aqui. Toda a gente devia cá vir. Devia ser obrigatório. Apetece-me gritar a todos que têm que fazer este esforço de ver e presenciar este horror, mas nem eu próprio sei se seria capaz de aqui voltar."


"Viajámos até aqui nos vagões selados; vimos partir em direcção ao nada as nossas mulheres e as nossas crianças; reduzidos a escravos, marchamos mil vezes para trás e para diante, numa fadiga muda, já apagados nas almas antes da morte anónima. Não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois poderia levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que, em Auschwitz, o homem teve coragem de fazer ao homem." - Primo Levi, judeu, italiano, químico, escritor e sobrevivente de Auschwitz, libertado em 1945, suicidou-se 42 anos depois em Turim, na Itália.