quinta-feira, 17 de maio de 2018

Diário de Bordo #3: AUSCHWITZ, portal do inferno




"Abandonai toda a esperança ó vós que entrais"


Estas palavras estão escritas no portal do Inferno na famosa obra de Dante, mas bem podiam estar escritas à entrada de Auschwitz

Antes de fazer a minha visita ao campo de extermínio nazi fiz um género de preparação. Nas últimas 2 semanas revi os filmes "A lista de Schindler" e "O Pianista". E pela primeira vez li o livro "Se isto é um homem", de Primo Levi, judeu italiano que sobreviveu a Auschwitz e que conta na obra como foi a sua vida (ou lenta morte?) enquanto prisioneiro no campo de concentração. 

Preparei-me, levei uma bagagem cultural já pesada, mas mal eu sabia que não havia preparação possível...

Pelas 8h cheguei a Auschwitz. Fui sozinho. Sem um guia, porque queria mesmo não ter nenhuma distração comigo. Apenas comprei na recepção à chegada um livro guia (excelente, por sinal!) e que fui lendo ao longo dos passos lentos que ia dando. 

Dentro do campo silenciei o telemóvel e só o usei para registar algumas fotos. Assim caminhei sozinho, em silêncio, durante horas. Como companhia tinha apenas uma caneta e o meu bloco de notas, onde fui escrevendo, conforme consegui, alguns dos meus pensamentos que agora aqui transcrevo.




"8:52h:
Já ando pelo campo há quase uma hora. Vou vendo tudo com calma e atenção, leio todas as descrições. Acabei de sair da sala 5 do bloco 4: o bloco do extermínio. Nesta sala podemos ver 'uma das mais chocantes provas do crime' (como está escrito no livro guia que comprei à entrada). Aqui estão expostas cerca de 2 toneladas de cabelos de mulheres judias que foram assassinadas nas câmaras de gás. O cabelo era aproveitado para vários fins, como material de produção de tecidos. Não consegui entrar à primeira tentativa... voltei para trás. Respirei fundo. Quase desisti. Tive que preparar-me para o horror que ia ver. E agora saí de lá e tive que parar uns momentos depois de ter percorrido aquela sala. Sinto-me tremer... mas vou continuar a visita..."

9:37h
Saí agora do bloco 6, que cobre detalhes da vida dos prisioneiros e das crianças que para aqui foram trazidas ou que aqui nasceram (as mulheres grávidas não escapavam à selecção para os campos de concentração). Mesmo depois de tudo o que li e estudei, de todos os filmes e documentários que vi, mesmo depois de aqui estar ainda me parece inacreditável e inconcebível que actos tão cruéis e bárbaros tenham sido feitos pelo homem ao homem. Estou na rua num espaço vazio entre os dois blocos. Impera o silêncio.  

11:21h
Tenho que me controlar várias vezes para não deixar que este sentimento pesado, e de uma estranha impotência, me leve às lágrimas. Já percorri muitos dos blocos onde seres humanos foram torturados e fuzilados sem piedade. Vi os seus objectos pessoais, como roupa, sapatos, óculos e infinitos objectos que lhes foram roubados à chegada. A questão que me acompanha em cada passo é sempre este 'Porquê?'. Por que é que isto aconteceu? Como é que se permitiu que um maníaco ditador levasse avante tanta brutalidade contra pessoas inocentes, contra crianças... sobretudo contra as crianças que choram em desespero na foto de 1942, no gueto judeu Varsóvia, que tenho agora à minha frente. Como? E porquê?





12:04h
Náusea. Uma náusea tão forte que me aperta o estômago e me dá um impulso para vomitar. Foi assim que saí agora da câmara de gás e do crematório, simbolicamente os últimos dois passos da primeira parte desta visita antes de seguir para o campo de Birkenau (ou Auschwitz II). Na câmara de gás há um cheiro que se entranha, um odor nefasto, talvez o próprio cheiro da morte, não sei. Foram mortas ali milhares de pessoas e sente-se de imediato uma extrema energia negativa. Os lugares têm memória. E não perdoam.





13:16h

Birkenau - Aschwitz II

Este lugar deita-te por terra e tira-te todas as forças. Entra-se pelo portão principal por onde entravam os comboios e vagões carregados de prisioneiros (maioria judeus, mas também homossexuais, ciganos, prisioneiros de guerra, etc) e é seguindo essa mesma linha férrea que atravessamos o campo, por quase 1km a pé, percorrendo o mesmo trajecto que seguiam à chegada, passando pelas ruínas das câmaras de gás, à direita e à esquerda, até chegar ao memorial com 23 placas nas 23 línguas principais dos deportados que foram aqui presos e cruelmente assassinados. Li as placas que consegui, primeiro em espanhol, apelam a um grito à humanidade para que nunca esqueça, depois em italiano, aperta-me o coração quando leio a palavra bambini, depois leio em inglês... e não aguentei mais. É uma dor, uma revolta, um sentimento quase novo que não sei explicar, mas que só senti aqui. E a minha única opção é sentar-me num canto isolado e deixar sair toda a tristeza que se apodera de nós aqui. Pela primeira vez quebra-se o silêncio desde o início da minha visita. Choro e não sei por que que choro. Olho para o vasto campo e é desolador mas reparo que junto às câmaras da morte nascem agora algumas flores. Como é possível que num lugar tão horripilante a natureza consiga ainda florescer? Será esta uma espécie de metáfora para as capacidades humanas de superação?




15:27h
Terminei a minha visita e saí pelo portão principal, deixando para trás o arame farpado da prisão... mas nem assim me sinto mais livre. 
Auschwitz é uma experiência aterradora, muito pesada. Caminhei durante 7 horas, com poucos descansos, caminhei, horas, caminhei, mas não é o corpo que me dói. 
É cá dentro, esta impressão que carrego. É o desconforto que me aperta. 
Não tenho dúvidas de que se é uma pessoa diferente depois de passar por aqui. Toda a gente devia cá vir. Devia ser obrigatório. Apetece-me gritar a todos que têm que fazer este esforço de ver e presenciar este horror, mas nem eu próprio sei se seria capaz de aqui voltar."


"Viajámos até aqui nos vagões selados; vimos partir em direcção ao nada as nossas mulheres e as nossas crianças; reduzidos a escravos, marchamos mil vezes para trás e para diante, numa fadiga muda, já apagados nas almas antes da morte anónima. Não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois poderia levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que, em Auschwitz, o homem teve coragem de fazer ao homem." - Primo Levi, judeu, italiano, químico, escritor e sobrevivente de Auschwitz, libertado em 1945, suicidou-se 42 anos depois em Turim, na Itália. 

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