terça-feira, 16 de outubro de 2018

Oktoberfest #2: Pânico a bordo do Flixbus!




O nosso meio de regresso de Munique a Frankfurt era uma viagem de 7h num dos autocarros da Flixbus


Era o nosso terceiro dia da nossa aventura no Oktoberfest. Estava meio ressacado, cansado e ainda chocado com os eventos anteriores no acampamento (que contei aqui). Só queria chegar a casa em paz. 

Tudo começou ainda em Munique, onde o autocarro já chegou com 1h de atraso. O motorista sai e começa a dar indicações sobre a bagagem e os lugares aos passageiros... em italiano! Estávamos na Alemanha, 70% dos passageiros eram alemães, outros portugueses, holandeses, etc... mas por acaso não havia um único italiano. Havia eu que percebo e falo italiano... mas... porque falava só nessa língua o motorista? Mesmo perante as caras confusas de todos os que estavam para embarcar, o homem não se importou muito que não percebessem uma única palavra do que dizia. Mas tudo bem. Eu lá traduzi o que consegui e ajudei umas pessoas. Seguimos viagem. 

Ao fim de 1 hora, já em alta velocidade na auto-estrada, começo a ouvir gritos vindos da parte da frente do autocarro. Gritos em italiano, claro está. Completamente descontrolado o motorista gritava a duas pessoas sentadas no banco da frente que tinham de se calçar porque cheiravam mal dos pés. Sim, isto. E eu podia acabar este post por aqui e já teria contado uma belíssima história mas calma que isto ainda não descambou por completo.  

Obviamente, essas pessoas não percebiam uma palavra da língua (eram alemães e falavam um pouco de inglês, mas zero de italiano, percebi mais tarde em conversa). 

No entanto o homem, nosso querido motorista, não falava mais nada além da sua madrelingua. E na sua mente, vá lá alguém entender porquê, gritar com as pessoas faria com que estas o entendessem. Ele lá lhes gritava que se calçassem e que cheirava a chulé (gente isto aconteceu!) e repetia que os punha na rua e que isto e aquilo, mas CRISTO SANTO... eles estavam completamente perdidos sem entenderem uma palavra. Eu estava atónito lá atrás. Mais ninguém percebia o homem e eu ia traduzindo para quem estava à minha volta. Faces confusas. Olhares de: "que raio se está a passar...". 

De repente uma travagem super perigosa, o autocarro desvia-se para a berma da auto-estrada em grande velocidade, pára, faz agitar toda a gente, acorda os que ainda não se tinham apercebido do filme. Absolutamente ninguém está a entender o que se passa (mesmo daqueles a quem eu já traduzi os acontecimentos parecem perdidos).

Buscando algum apoio, o motorista levanta-se e vem pelo autocarro fora a procurar alguém que fale italiano. Respondo-lhe eu a pedir que siga viagem, por favor, porque já estamos com atraso de 1h. Responde-lhe outro senhor, que fala mais ou menos um italiano estranho e que lhe grita na cara: "STRONZO!!!"

Pronto. Foi o fim. "Stronzo" em italiano significa algo como estúpido, imbecil... mas num nível muito mais ofensivo, é como chamar "as*hole" a alguém em inglês.

O motorista passa-se, começa a pedir o nome ao outro homem para apresentar uma queixa, que lhe responde só que se chama "signore"... e eu já só me ria com isto.

Entretanto os da frente lá percebem que têm de se calçar e seguimos viagem. Ainda não tinha passado outra hora quando todos ouvimos um anúncio feito através do microfone do autocarro: "O rapaz que fala italiano pode por favor vir aqui à frente?". Era para mim. As minhas amigas olham-me e uma delas diz-me "por favor vai lá mas tem calma com o homem".

E lá vou. Super calmo, entendo que o motorista quer o meu apoio porque sou o único que na verdade pode falar com ele. E agora fazemos uma pausa só para explicar isto. Estávamos na Alemanha. O Flixbus tem sempre 2 motoristas porque como são viagens longas eles têm que ir trocando de posição. Seria de esperar que pelo menos o outro motorista falasse alemão. Mas não. E pior, não falava nem italiano, nem inglês. Sinceramente já não lembro qual era a sua origem, mas era uma língua que não nos servia naqueles momentos difíceis. Inacreditável... mas nem os dois motoristas conseguiam comunicar entre si!!!

Bem... o italiano lá me diz que planeia chamar a polícia na próxima paragem (em Nuremberga) para expulsar os dois passageiros dos pés mal lavados... e o terceiro que lhe chamou "stronzo". Eu apelo a que não o faça porque isso só nos vai atrasar mais e irritar as pessoas contra ele e originar mais reclamações e revolta e etc etc etc. Digo-lhe na cara que nos pôs a todos em risco com aquela travagem súbita e que vou ter que escrever à empresa de transportes sobre isso. E por momentos acho que o homem está a ouvir a minha voz tranquila e razoável, percebo que ele fica mais calmo depois de conseguir finalmente comunicar com alguém na sua língua. Vejamos esta imagem. Eu sentado nos degraus lá à frente a ter uma conversa com o motorista que guia por uma auto-estrada alemã (onde nem há limite de velocidade). A certo ponto até lhe explico que o meu trabalho, embora diferente, também é o de lidar todos os dias com passageiros... e até brinco dizendo que se expulsasse todos os que se descalçam nos meus voos, os aviões iriam meio vazios. 

Depois de mais conversa, volto para o meu lugar. Explico tudo às pessoas que estão sentadas à minha volta. Ninguém quer acreditar no que está a acontecer. Mas talvez o homem não chame a polícia.


ERRADO!

Na paragem em Nuremberga chama a polícia e os passageiros são impedidos de seguir viagem a bordo. Isso causa-nos mais atraso e um sem fim de contratempos a todos. 

Isto foi tão injusto por motivos que nem consigo enumerar totalmente. E assim, por ser teimoso, mal-educado e completamente fora de controlo, este motorista deu origem à minha maior reclamação de sempre ao serviço do Flixbus

Ainda estou à espera de uma resposta. 

Mas... minchia! Sobrevivi!



quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Oktoberfest #1: psicopata no acampamento

foto: svenmakesphotos


Este ano fui pela primeira vez ao Oktoberfest em Munique. E tenho muitas histórias para vos contar sobre isso. Sendo assim, dividi em 3 partes os posts sobre esses 3 dias naquela bela cidade alemã. 

Começo com o texto mais difícil que alguma vez escrevi sobre uma viagem. Houve muita discussão se deveria publicar isto ou não, com os intervenientes e com pessoas que me são próximas. Acabei por decidir-me a fazê-lo, porque talvez seja necessário afirmar e confessar, desta vez, que nem tudo nas viagens é perfeito e que, pior do que isso, as situações podem muitas vezes chegar a... extremos.

Vou tentar manter a linguagem o mais correcta possível, mas devo avisar que o conteúdo pode ferir algumas pessoas mais sensíveis, por isso a quem não se sentir à vontade, o melhor é parar por aqui.

O sítio escolhido para a nossa estadia em Munique foi o parque de campismo "Lost Souls" (Almas Perdidas, em português, e só isto devia já dizer muito sobre esta história...).

Nós éramos 3 numa tenda para 4, o que significava que o outro lugar da atenda seria alugado a outra pessoa qualquer (as tendas já estavam montadas e faziam já parte do parque).

A primeira noite correu bem e até houve uma situação embaraçosa mas que nos fez rir. A meio da noite um rapaz e uma rapariga ingleses, completamente ao acaso, vieram e abriram a nossa tenda à procura de um sítio para... bem... fazerem o amor (embora eles não tenham usado propriamente estas palavras quando em grande surpresa viram que a tenda já estava ocupada). "Temos que ir f... noutro sítio". Imaginem a minha reacção quando ouvi isso. Fartei-me de rir com a descontracção deles e lá lhes disse "Sim, por favor, se não for pedir muito, vão lá f... noutro sítio". Eles nem se importaram muito e seguiram na sua procura por uma tenda vaga para o efeito. 

A segunda noite foi horrível. Mas terrível mesmo. O nosso colega de tenda era, sem rodeios, completamente psicótico. Desde uma conversa absurda que teve connosco sobre ser um ex-militar que tinha sofrido traumas no exército ... senti logo uma vibe extremamente negativa. Ele falava sempre ao ataque, mesmo quando se tratava de uma conversa aparentemente inofensiva, via-se mesmo que procurava sempre ir pela via da discussão. Para além disso estava bêbado, muito bêbado (e sobe o efeito de drogas também, quase que aposto). Era o tipo de pessoa que ao "boa noite" de uma rapariga respondia com um "entendi isso como um convite para vir mais tarde ter contigo e...". E sim, isto realmente aconteceu e foi... nojento, repugnante e tão revoltante! Só isto daria para tanta conversa sobre esta ideia que alguns homens têm sobre a permissão de fazerem o que bem lhes apetece com as mulheres. Mas bem...

Só por isso, obriguei a minha colega de tenda a ir dormir para a minha divisão (a tenda tinha 3 espaços separados, digamos assim). Simplesmente temi logo o pior quando ouvi uma coisa dessas vinda daquela pessoa. Eu já sabia que ele seria capaz de tudo!

E eu não estava enganado. Infelizmente. Volto a avisar. Este não é um post feliz, e talvez seja melhor parar por aqui a leitura. 

Depois daquela conversa nojenta, ele foi para a rua e andou à deriva pelo acampamento, de vez em quando eu ouvia a voz dele aqui e ali, sempre num tom irritado e assustador, até que já mais perto de nós começou a discutir violentamente com outras pessoas do camping... porque esses campistas o tinham encontrado a dormir nas suas tendas! Imaginem só... ele teve a lata de fazer isso. 

Daí ele teve que voltar para a nossa tenda e foi aí que tudo piorou. Ele falava em inglês, numa voz profunda e completamente perturbada, repetia frases sem parar, sem nexo, completamente louco... parecia saído de uma cena daqueles filmes de terror americanos, enquanto procurava incessantemente algo, algum objecto, pela tenda. 

"Vou cortar-lhes a garganta."

"Vou matá-los a todos pelo que me fizeram."

"Vão morrer todos agora."

"Vai ficar tudo cheio de sangue."

"Filhos da put... vão todos morrer". 

Foram apenas algumas das frases, que escritas aqui assim até me parecem inofensivas, quando as comparo com o que lembro desses momentos.

Nunca mas, absolutamente, nunca tive tanto medo na minha vida. Não conseguia mexer-me, fiquei horas parado na mesma posição, não conseguia falar e foi só por gestos que toquei na minha amiga para lhe fazer sinal de que estava desperto. Ambos, sem nunca falar, tivemos a mesma ideia: seria melhor não fazermos notar a nossa presença e não o encarar. Uma pessoa com um grau de loucura daqueles apenas iria atacar-nos e fazer sabe-se lá o quê no caso de um confronto. As tendas eram todas coladas umas à outras e todas as outras pessoas no acampamento devem ter pensado o mesmo que nós, porque mais ninguém reagiu (e eu entendo exactamente porquê). Tremi como nunca tinha tremido. Fiquei só a desejar que as horas passassem. E não dormi. Só quando ouvi que a besta tinha adormecido, pelo ressonar pesado dele, é que consegui ir fechando os olhos mas mesmo assim estava sempre num estado de alerta brutal. Nisso tudo, algo me disse para nunca me levantar e ficar ali imóvel.

De manhã cedo, quando já tínhamos pelo menos a luz do dia a nosso favor, arrumamos tudo à pressa e saímos da tenda. Fomos à recepção, onde avisei que tínhamos um... pequeno problema.

O psicopata lá ficou a dormir. E eu mais aliviado.

Mas no meio disto tudo seguirá uma reclamação gigantesca contra os responsáveis pela segurança no parque (e não só). É verdade que ninguém pode adivinhar as psicoses de um dos hóspedes. Mas havia segurança 24 horas... e ninguém parece ter dado pela discussão tremenda que ocorreu ali nem, depois, pela voz desvairada de um doido que acusava outros, sabe-se lá exactamente quem, de morte.

Confesso... agora que escrevi sobre isto, parece que foi como uma ida ao psicólogo, que aliviei tudo, mas acreditem que... embora isto dê uma excelente história para risadas futuras, eu preferia muito mais nunca ter passado por esta experiência. Os últimos dias têm sido terríveis com aquelas frases sempre a ressoar na minha cabeça. Por vezes ainda acho que não passou de um sonho mau. Mas agora está tudo bem e é o que interessa. 

Pela primeira vez... e eu já viajei por tantos sítios SOZINHO... corri até becos escuros às tantas da madrugada sozinho numa das cidades mais perigosas da Europa... mas, repito, pela primeira vez senti mesmo que a minha vida estava em perigo. 

Como por acaso isto aconteceu em Outubro, a poucas semanas do Halloween, e se não tivesse sido comigo, dificilmente acreditaria. 

Felizmente, o Okotberfest em si foi uma alegria do início ao fim e um dos melhores eventos em que já participei. Mas sobre isso falarei no próximo post aqui no blog... e ainda tenho outra história inacreditável para vos contar. Digamos que foram 3 dias muito... produtivos. 

domingo, 16 de setembro de 2018

LET ME BE: second excerpt of the book





As we move closer and closer to the publishing of the book it's now time for me to reveal an excerpt of the Chapter 1: The year of death. This text reflects a time when I was still discovering my true identity...


"September, 2006.

For my own good, the internet was already a unique tool for my discovery. And so, in some late afternoon after school, I found myself avidly reading the forum of an association for young people who were... like me. But that virtual space was not just that. I soon realized that there was a much more complete side, which included several sexual orientations and other definitions that had never crossed my mind. It may seem not that much of a deal looking at it right now but, in addition to the vast load of information, what I really felt was that I finally had an online place where I could get in touch with other young people like me, without having as a first question something about my favorite sexual position.
            And that was when, with such thought,  I transpired the first timid smile in many and lengthy months which had forced me to drag that uncomfortable pain of not wanting to be that way. Inside of me a light was turned on. Perhaps there was nothing wrong to be that way, maybe I had a place in the world, maybe I could be fully understood for that.
            But somewhere, many miles away, my father was now experiencing another kind of pain, the one of not accepting that a child could be different from most. I wanted to take all that new information I discovered to him. I wanted to sit with him, I wished to sit beside him, I wished to explain. But fulfilled wishes were not really part of my days at that time, so I confined myself to that place, sitting on my bed, with my computer on the lap, dwelling on the duality of discovering so much and at the same time being unable to speak about it, hence swinging between these two opposite poles.
            I stopped on one of the forum’s threads, which had something about LGBT bars. Several people talked about the places that they attended in their cities and, because nobody could take the imagination from me, I dreamt about the possibility of having a place like that in my city. But why limiting yourself to wondering when you can ask? I would remain anonymous, nobody would know me. So I created an account on the forum’s website and I wrote my first and short question. In doing so I felt a sort of freedom that was odd to me. I remember that I spend some time looking blankly at the screen, reflecting on the name that was being displayed. Rede ex aequo. That was the name of the association, which, translated from Latin, gives us the word equality. And wasn’t that what I was looking for? Equality. No more no less.

             I lost myself in the anxiety of wanting an answer to the question which I had just submitted and so I looked at the street through the huge window, where large drops of rain were running down. I fixated that image. Quiet. In silence. I simply remained petrified by floods of thoughts and recent memories of my father’s voice yelling that I could not be that way, that I was an abnormality, a sick being or an aberration. And then I went back to my childhood, not so distant, with my father giving me everything, the affection, the gifts, the compliments. I relived the pride that he had in me and in what I did; I revisited his jovial expression when he took me to the music school, when I read to him something that I had written, when I told him that I dreamed to be a writer and publish a book. My father truly loved me and encouraged me to go after my dreams. But now, at the same time, these flashes of my life were all juxtaposed; the past and the present were tied to one another, and the fact that my father could hate me overnight did not make any sense. I had not changed. I was the same old Filipe, only much more shattered now. But what I was before was still there and that father was too. All that could not have suddenly disappeared. It couldn’t. 
      Someone knocked on the door of the room. Those images faded immediately and I assumed my happiest semblance."
 


"Let me be" will come out in October. 

sábado, 8 de setembro de 2018

LET ME BE: the first excerpt of the book is here




This is an exclusive excerpt of my new book Let me be. This text is part of Chapter 5 - Demons, wich tells the ongoing story after my coming out in the aftermath of a turbulent and toxic relationship. 

"March, 2011

It is weird, even annoying, that the only feeling capable of dragging you to the dark side is something as pure as love. Only the debris of such a noble feeling could be fertile ground for all the hatred that was now throbbing inside of me, deep down, in a place where I never thought I would go.
And I knew how that story would end. The story of a boy who looked for answers and hope in life’s dark side. I knew it was the wrong path and that at the end of it there was an opportunity for redemption. I knew it was possible to find balance again. I had seen that story from another point of view, across the stars. But in those moments when my eyes showed nothing but blinded hatred, when my words shattered the quiet silence, when my movements were brisk, strong, destructive; I knew that all of that was not me. It was the ultimate outcome of so much violence.
And, as I walked through, my steps echoed a song, it was the one of a being willing to do anything to destroy anyone who had dared to toss him into a deep, murky place. Those were chords that sent shivers down the spine, which could be heard from a distance, then near, then away and then near again, followed by voices that yelled fears, anguish, revenge.

After so much time, it seemed that the duel between my two beings had arrived. Light against darkness. I against I, no matter how much I tried to convince myself that, in that battle, there was someone else besides my own fractured being. It was as if, after years of inner and outer struggles, I was finally facing the major clash of my life. And I just could not forecast the future, nor had I any power that could warn me about it, but, later on, I realized that it was the moment when everything started to shape the biggest metamorphosis of my own Fate." 


Let me be will be published through Amazon worldwide in October. 

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Diário de Bordo #6: um amor próprio

@ pixabay


Estaria longe de imaginar que à noite numa floresta alemã correria o vento quente. Mesmo que pensasse em Agosto. Não, isso não faria parte do meu pensamento. Mas ali estava aquele lugar escuro e quente, contraditório, desafiador. A claridade da lua dava às árvores um aspecto sombrio, meio assustador, meio sedutor. 


"Tu dizes que sou selvagem... bem, isso é porque para mim o amor é liberdade. Se alguém me diz 'Amo-te'... eu vejo isso como um elogio à minha liberdade. Eu posso amar-te esta noite... sem compromissos. Só não quero acordar com a sensação de que te devo algo. Não quero passar os meus dias a fazer coisas que não me satisfazem só por fazer coisas com alguém. Eu preciso de tempo. Preciso de espaço. Preciso das minhas coisas e do meu silêncio. 
Alguns chamam a isso egoísmo, alguns chamam-lhe amor próprio... mas eu sou apenas um sonhador, caberia perfeitamente num daqueles filmes dos finais dos anos 60; a minha liberdade grita por mais, a minha identidade é baseada em revoluções. 
Não consigo fingir um sentimento, não consigo fingir ser feliz só pela necessidade de ter alguém a quem chamar namorado. 
Tenho o amor próprio. E vou dar-te uma amostra desse amor infinito de cada vez que te tocar. Vais sentir como isso pode ser poderoso. Vais entender que esse é um tipo de amor que também se partilha."

A lua ainda brilhava. Os olhos, já acostumados à escuridão, viam agora melhor a densa extensão de árvores contra o céu estrelado. O vento corria abafado como antes. O chão frio. As mãos quentes. 



terça-feira, 10 de julho de 2018

Diário de Bordo #5: Amesterdão - do outro lado da janela

Por detrás de uma das famosas janelas de luzes vermelhas.

Visitei Amesterdão durante 3 dias e falarei mais sobre a cidade em si noutro post. Hoje venho falar do lado mais vermelho... ou mais negro... de uma das cidades mais fascinantes do mundo.

Não demorou muito, logo no primeiro dia da visita, ao cair da noite estava já completamente apaixonado pela cidade... e ainda me faltava visitar um dos locais mais icónicos (e controversos): o Red Light District

Foi nas horas de escuridão que me dirigi lá.

O Red Light é de facto muito turístico. Ok, eu já esperava isso, mas turístico ao ponto de termos pessoas de todas as idades (crianças, sim!) a passear por ali em modo familiar... bem, deu-me sentimentos muito dúbios. 

E indo directo ao ponto. É interessante, sim, mas é triste também, pois ver aquelas mulheres ali expostas nas janelas como se fossem um produto e não um ser humano, bem, é um pouco complexo explicar isto, mas a sensação que me deu não foi muito positiva. 

Por outro lado as prostitutas (ou profissionais do sexo) parecem ter condições mínimas para ali trabalhar. Afinal a prostituição é uma profissão e legal na Holanda, portanto supostamente tudo deve funcionar bem ali... mas fica claro que há uma área bastante cinzenta onde não conseguimos entender quem está ali a trabalhar porque quer ou porque foi... obrigada. 


À medida que passamos pelas janelas, vemos as prostitutas do outro lado em poses sensuais, meio despidas, que nos chamam com gestos e palavras... tentadoras? Mas embora isso possa ser atraente para alguns, para outros será só uma forma de repugnância. 

E foi na ânsia de descobrir mais sobre isso que decidi ver o outro lado dessa realidade, visitando, na minha segunda noite, o Red Light Secrets ou Museu da Prostituição



Quarto. Do outro lado tinha uma banheira. Repara nos pormenores...


Situado mesmo no seio do bairro da prostituição, isto não é bem um museu, mas mais uma experiência, pois trata-se de um antigo bordel onde a prostituta Annie Zentveld foi assassinada em 1957 (o assassino nunca foi encontrado nem o caso resolvido) e esse é até hoje um dos maiores mistérios de Amesterdão.

Tratando-se verdadeiramente de um antigo bordel é possível visitar a recepção, os quartos e os aposentos das trabalhadoras e trabalhadores, pois somos também confrontados com o escritório do gerente do sítio... e só nessa pequena sala temos logo uma ideia bastante complexa de como funcionava (e funciona) este mundo do sexo. Dica: atenção às câmaras de vigilância...

A experiência é enriquecida com um guia áudio e um pequeno livro, entregues à entrada, com detalhes e confissões reais de prostitutas que trabalharam e ainda trabalham na zona. Por vezes é chocante... por vezes alivia-nos o "peso na consciência"... e de todas as vezes nos faz reflectir. 

"Mr. Grey will see you now" 

E o museu de certo faz tudo para satisfazer a nossa curiosidade sobre as mais variadas formas de prazer que os clientes procuram quando ali vão. Temos até uma "sala da dor", onde podemos observar vários brinquedos sexuais, uma jaula, um baloiço, uma cruz... e outros instrumentos de tortura para os adeptos do sadomasoquismo (a foto ali em cima não mostra nada! Prefiro deixar o resto à vossa imaginação).

Mas a grande surpresa e o momento que mais incomoda é quando passamos uma porta e de repente estamos do outro lado de uma das janelas. SIM! As pessoas na rua podem ver-nos... e estamos à vista de todos como se fossemos uma das mulheres que ali trabalham. Este súbito twist na visita deu-me o desconforto necessário para concluir o pensamento que já tinha formulado na minha mente. É horrível alguém ter que passar por aquilo. Somos tratados como um objecto em exposição. E é isso.

E eu não quero nem comparar-me a quem tem mesmo de sujeitar-se a isso, porque o que senti talvez tenha sido apenas 1% da realidade (ou nem isso).


do lado de cá.


No final ficam muitas dúvidas. Quantas mulheres trabalham ali realmente porque... gostam? Em alguns dos relatos de facto há quem admita fazê-lo por gosto (mas não por prazer). E quantas são exploradas por chulos ou pimps?

A verdade é que o Red Light é uma mistura de excitação (não resisti!), revolta e fascínio. Os olhares sedutores. As vozes que sussurram baixinho e convidam a uma aventura. Os corpos quase perfeitos. A maquilhagem exuberante que parece esconder algo. E uma felicidade fingida, tudo demasiado artificial, não só porque também é turístico, mas porque o apelo não é completamente real.

Confissões de antigos visitantes curiosos.


A parte final do museu está feita para nos aliviar e fazer descomprimir um pouco. Há uma parede de confissões com papéis tipo post it onde somos convidados a ler desabafos de visitantes anteriores e, claro, a deixar também um segredo erótico... algo que nunca contamos a alguém. Para isso existe um confessionário como o das igrejas católicas, onde numa gravação um padre fala em italiano e nos pede para lhe confessarmos os nossos pecados. Primeiro li e ri-me bastante com muitos dos segredos ali escritos e expostos (vocês não imaginam o que as pessoas escrevem!!), depois entrei no confessionário, fechei e cortina e deixei a minha própria confissão com um segredo erótico e foi... revelador e surpreendentemente reconfortante. Não o partilharei aqui, obviamente, mas se visitarem o local podem lê-lo na parede e talvez tentar descobrir qual é. :P

Este último passo no museu deixa-nos mais perto da conclusão de que somos todos iguais e de que todos temos algo a esconder nas infinitas variantes da sexualidade, tornando-nos tão ou mais pecadores do que as prostitutas que facilmente, por vezes, julgamos... só porque afinal julgar e ser julgado faz parte da natureza humana, certo?

Visita obrigatória para quem quer entender realmente como funciona o tão famoso Red Light District de Amesterdão






segunda-feira, 28 de maio de 2018

Diário de Bordo #4: Cracóvia - um sítio onde regressar



Não só porque foi uma passagem rápida de 3 dias, mas sobretudo pelo seu ambiente único, Cracóvia foi uma cidade que imediatamente me deu aquela vontade de lá regressar para descobrir mais.

Tentarei explicar melhor porquê. 

No primeiro dia cheguei sozinho ao aeroporto de Cracóvia já a meio da tarde, depois de alguns atrasos inesperados com o meu voo. Mas chegar ao centro da cidade foi muito fácil. Ao sair do terminal do aeroporto apanhei o comboio para o centro e em cerca de 20 minutos já estava a chegar ao hostel onde ia dormir nessa noite. 

Ansioso por conhecer a cidade, que pelas ruas que tinha percorrido já me ia agradando, fiz o check in e saí em direcção à Praça do Mercado, mesmo no centro histórico.



Só estas ruas eram o suficiente para me render completamente à cidade, mas é a praça central que rouba todo o protagonismo. Dizem que é a maior praça medieval da Europa e não duvido. É que tem muito para ver e apreciar. De um lado a imponente Basílica de Santa Maria (onde foram filmadas cenas de "A Lista de Schindler"), do outro lado a torre da antiga 'câmara municipal', ao centro uma outra igreja mais pequena (a de São Adalberto, na foto em baixo) e ainda o lindíssimo edifício do mercado (tão bonito por fora como por dentro). E depois todos os edifícios à volta, com uma arquitectura que nos transporta imediatamente para outros tempos. 



Edifício do mercado, que ainda funciona actualmente, mantendo toda a estrutura original da época. Lá dentro é possível encontrar muitos comerciantes de artesanato, por exemplo.

Fiquei algum tempo a apreciar tudo isto, antes de voltar a caminhar pelas ruas que me levaram ao Barbican, à muralha e ao castelo.


O Barbican é um edifício que funcionava como o portão da cidade, sendo assim, juntamente com a muralha, uma protecção contra invasores. Mantém-se até hoje muito bem conservado, como se pode ver pela foto. E o jardim em volta é absolutamente um dos sítios onde devemos passar algum tempo a contemplar o passado. 

Aproximava-se a hora de jantar e depois de caminhar tanto tive a sorte de encontrar, na praça logo por detrás do Barbican um restaurante muito especial. E nas viagens aquilo que comemos tem sempre um papel importante nas memórias que levamos, certo? 

O Glonojad é um restaurante vegetariano, logo perfeito para mim, mas que tem outra particularidade muito interessante. Todos os produtos neste bar/restaurante provêm de quintas e pequenos produtores locais e não tive dúvidas disso quando provei o sumo de cenoura e senti aquele sabor mesmo cru e intenso. A qualidade é notória e os preços são muito apelativos. 

Para além disso tem um ambiente muito descontraído, música de fundo relaxante, e por isso aproveitei para ficar ali a escrever no meu bloco de notas durante algum tempo.

Ali a fatia de doce na foto entrou para o TOP de melhores doces que já comi. Não lembro do nome infelizmente, mas levava leite de soja, romã e amêndoa. De comer e chorar por mais!

 Depois de recuperar energias voltei para as ruas de Cracóvia, agora imersas na escuridão da noite, adquirindo uma atmosfera mais dark e absolutamente fascinante. A cidade parecia ter-se transformado subitamente. E amei isso. Encontrei-lhe outra aura, com os jogos de luzes nos edifícios antigos, ainda mais interessante e misteriosa. E foi envolvido nesse ambiente que adormeci nessa noite.

Mas dormi poucas horas. Estava ansioso pelo dia seguinte e por isso passava pouco das 4 da madrugada e já estava desperto. Surpreendentemente a essa hora já havia uma claridade intensa na cidade. 



Na foto, lateral do Teatro Juliusz Słowacki, um edifício magnífico que se impõe a tudo o que o rodeia. A fachada é ainda mais impressionante. Passei aqui no meu caminho para o autocarro que me levaria à visita a Auschwitz que já relatei aqui. E deste segundo dia podem ler praticamente tudo nesse post. Essa visita foi tão intensa (e dolorosa) que tinha planeado outros passeios pela cidade ao regressar ao fim da tarde, mas já não consegui.

A minha mente estava pesada demais, por isso rendi-me e decidi ficar só pela praça principal à noite e fui experimentar uma sopa tradicional numa feira que estava a acontecer mesmo ali na Praça do Mercado. Sentei-me ali num banco a comer e esta vista (aqui na foto de baixo) era a panorâmica do meu improvisado restaurante. Podia ter melhor? Às 23h, como em todas as horas certas, lá veio o músico tocar trompete numa das janelas da Basílica de Santa Maria. Diz a lenda que durante a invasão mongol um trompetista subiu à torre da igreja para tocar o seu instrumento e avisar a população que os invasores se aproximavam, mas acabou por ser silenciado com uma seta na garganta, morto por um mongol que certamente tinha uma visão muito boa (devia ser primo do Legolas!). Por isso agora todos os dias a todas as horas certas, sempre que o relógio marca o ponto, vem um trompetista tocar o mesmo som em homenagem a esse herói do passado. Um pormenor brutal que enriquece ainda mais a já rica cidade. 



No terceiro dia o meu voo partia pouco depois da hora do almoço, mas ainda me deu tempo para um último passeio pelo centro histórico, onde tomei um pequeno-almoço divinal (e muito barato, novamente!) e terminei assim depois a minha visita almoçando os típicos pierogi de batata e queijo. Fiquei fã!

Ao embarcar no avião de regresso a casa já só pensava em voltar a Cracóvia. Ficou muito por ver. Quero visitar as minas de sal e conhecer devidamente a fábrica de Oskar Schindler (depois de ir a Auschwitz sozinho já não tive forças para aguentar mais isso...)

Tendo em conta que do sítio onde vivo agora, Frankfurt, os voos para Cracóvia demoram cerca de 1h e são super económicos, é mais do que certo de que mais cedo ou mais tarde irei voltar lá para me fascinar novamente.

Termino com o seguinte:: 

Cracóvia é uma cidade carregada de histórias e por vezes de uma História que pesa. Da época medieval e da atmosfera gótica que a noite traz, é ainda mais impressionante perceber como esta cidade conseguiu chegar aos dias de hoje ostentando tanta beleza. Passou por ali um dos maiores horrores da história recente, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial quase destruíram o legado da cidade, mas será por isso que, na escuridão, o centro histórico adquire aquela aura densa que ao mesmo tempo assusta e seduz?


quinta-feira, 17 de maio de 2018

Diário de Bordo #3: AUSCHWITZ, portal do inferno




"Abandonai toda a esperança ó vós que entrais"


Estas palavras estão escritas no portal do Inferno na famosa obra de Dante, mas bem podiam estar escritas à entrada de Auschwitz

Antes de fazer a minha visita ao campo de extermínio nazi fiz um género de preparação. Nas últimas 2 semanas revi os filmes "A lista de Schindler" e "O Pianista". E pela primeira vez li o livro "Se isto é um homem", de Primo Levi, judeu italiano que sobreviveu a Auschwitz e que conta na obra como foi a sua vida (ou lenta morte?) enquanto prisioneiro no campo de concentração. 

Preparei-me, levei uma bagagem cultural já pesada, mas mal eu sabia que não havia preparação possível...

Pelas 8h cheguei a Auschwitz. Fui sozinho. Sem um guia, porque queria mesmo não ter nenhuma distração comigo. Apenas comprei na recepção à chegada um livro guia (excelente, por sinal!) e que fui lendo ao longo dos passos lentos que ia dando. 

Dentro do campo silenciei o telemóvel e só o usei para registar algumas fotos. Assim caminhei sozinho, em silêncio, durante horas. Como companhia tinha apenas uma caneta e o meu bloco de notas, onde fui escrevendo, conforme consegui, alguns dos meus pensamentos que agora aqui transcrevo.




"8:52h:
Já ando pelo campo há quase uma hora. Vou vendo tudo com calma e atenção, leio todas as descrições. Acabei de sair da sala 5 do bloco 4: o bloco do extermínio. Nesta sala podemos ver 'uma das mais chocantes provas do crime' (como está escrito no livro guia que comprei à entrada). Aqui estão expostas cerca de 2 toneladas de cabelos de mulheres judias que foram assassinadas nas câmaras de gás. O cabelo era aproveitado para vários fins, como material de produção de tecidos. Não consegui entrar à primeira tentativa... voltei para trás. Respirei fundo. Quase desisti. Tive que preparar-me para o horror que ia ver. E agora saí de lá e tive que parar uns momentos depois de ter percorrido aquela sala. Sinto-me tremer... mas vou continuar a visita..."

9:37h
Saí agora do bloco 6, que cobre detalhes da vida dos prisioneiros e das crianças que para aqui foram trazidas ou que aqui nasceram (as mulheres grávidas não escapavam à selecção para os campos de concentração). Mesmo depois de tudo o que li e estudei, de todos os filmes e documentários que vi, mesmo depois de aqui estar ainda me parece inacreditável e inconcebível que actos tão cruéis e bárbaros tenham sido feitos pelo homem ao homem. Estou na rua num espaço vazio entre os dois blocos. Impera o silêncio.  

11:21h
Tenho que me controlar várias vezes para não deixar que este sentimento pesado, e de uma estranha impotência, me leve às lágrimas. Já percorri muitos dos blocos onde seres humanos foram torturados e fuzilados sem piedade. Vi os seus objectos pessoais, como roupa, sapatos, óculos e infinitos objectos que lhes foram roubados à chegada. A questão que me acompanha em cada passo é sempre este 'Porquê?'. Por que é que isto aconteceu? Como é que se permitiu que um maníaco ditador levasse avante tanta brutalidade contra pessoas inocentes, contra crianças... sobretudo contra as crianças que choram em desespero na foto de 1942, no gueto judeu Varsóvia, que tenho agora à minha frente. Como? E porquê?





12:04h
Náusea. Uma náusea tão forte que me aperta o estômago e me dá um impulso para vomitar. Foi assim que saí agora da câmara de gás e do crematório, simbolicamente os últimos dois passos da primeira parte desta visita antes de seguir para o campo de Birkenau (ou Auschwitz II). Na câmara de gás há um cheiro que se entranha, um odor nefasto, talvez o próprio cheiro da morte, não sei. Foram mortas ali milhares de pessoas e sente-se de imediato uma extrema energia negativa. Os lugares têm memória. E não perdoam.





13:16h

Birkenau - Aschwitz II

Este lugar deita-te por terra e tira-te todas as forças. Entra-se pelo portão principal por onde entravam os comboios e vagões carregados de prisioneiros (maioria judeus, mas também homossexuais, ciganos, prisioneiros de guerra, etc) e é seguindo essa mesma linha férrea que atravessamos o campo, por quase 1km a pé, percorrendo o mesmo trajecto que seguiam à chegada, passando pelas ruínas das câmaras de gás, à direita e à esquerda, até chegar ao memorial com 23 placas nas 23 línguas principais dos deportados que foram aqui presos e cruelmente assassinados. Li as placas que consegui, primeiro em espanhol, apelam a um grito à humanidade para que nunca esqueça, depois em italiano, aperta-me o coração quando leio a palavra bambini, depois leio em inglês... e não aguentei mais. É uma dor, uma revolta, um sentimento quase novo que não sei explicar, mas que só senti aqui. E a minha única opção é sentar-me num canto isolado e deixar sair toda a tristeza que se apodera de nós aqui. Pela primeira vez quebra-se o silêncio desde o início da minha visita. Choro e não sei por que que choro. Olho para o vasto campo e é desolador mas reparo que junto às câmaras da morte nascem agora algumas flores. Como é possível que num lugar tão horripilante a natureza consiga ainda florescer? Será esta uma espécie de metáfora para as capacidades humanas de superação?




15:27h
Terminei a minha visita e saí pelo portão principal, deixando para trás o arame farpado da prisão... mas nem assim me sinto mais livre. 
Auschwitz é uma experiência aterradora, muito pesada. Caminhei durante 7 horas, com poucos descansos, caminhei, horas, caminhei, mas não é o corpo que me dói. 
É cá dentro, esta impressão que carrego. É o desconforto que me aperta. 
Não tenho dúvidas de que se é uma pessoa diferente depois de passar por aqui. Toda a gente devia cá vir. Devia ser obrigatório. Apetece-me gritar a todos que têm que fazer este esforço de ver e presenciar este horror, mas nem eu próprio sei se seria capaz de aqui voltar."


"Viajámos até aqui nos vagões selados; vimos partir em direcção ao nada as nossas mulheres e as nossas crianças; reduzidos a escravos, marchamos mil vezes para trás e para diante, numa fadiga muda, já apagados nas almas antes da morte anónima. Não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois poderia levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que, em Auschwitz, o homem teve coragem de fazer ao homem." - Primo Levi, judeu, italiano, químico, escritor e sobrevivente de Auschwitz, libertado em 1945, suicidou-se 42 anos depois em Turim, na Itália. 

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Diário de bordo #2: uma tour grátis por Frankfurt

Grupo que fez parte desta Free Tour (várias nacionalidades numa foto).

A convite de uma colega de trabalho, que também veio de Lisboa comigo para esta nova aventura aqui em Frankfurt, lá decidi ir experimentar a "Frankfurt free alternative walking tour". Esta tour é organizada por estudantes da universidade que quiseram dar a conhecer outros aspectos da cidade, oferecendo um serviço gratuito enquanto nos vão mostrando um pouco da história, hábitos e locais mais importantes de Frankfurt. Claro que no fim recebem sempre algumas gorjetas mas o valor que cada um dá é absolutamente livre, como a própria tour

Às 14h do sábado passado lá nos encontrámos então com o grupo de pessoas que iria participar nesse dia. O ponto de encontro é numa das ruas mais movimentadas, mesmo junto à estação, e por isso foi muito fácil de lá chegar. Não é preciso marcar nada, basta estar lá a essa hora e pronto.

O nosso guia era o Alan e foi com um inglês perfeito que nos recebeu e começou a falar sobre a sua cidade. 

Logo desde o início, o nosso guia foi muito claro: queria mostrar-nos o lado mais brilhante mas também o lado mais negro de Frankfurt. E conseguiu. No nosso passeio pelas contrastantes ruas da metrópole tivemos oportunidade de ver o melhor e o pior de uma cidade que vai do underground da música techno ao topo dos arranha-céus dos maiores bancos e empresas da Europa.

Ponto de encontro.
Assim, começámos pelo lado menos bonito da cidade, o  chamado "Red Light District", que alíás eu já tinha visitado anteriormente tal como relatei aqui: Da podridão ao dinheiro: uma visita ao Red Light District de Frankfurt

A verdade é que apesar de aí vermos o lado mais rotten, não deixa de ser interessante presenciar essa realidade tão crua. Desta vez não o fiz sozinho e com as explicações do guia sobre como aquela zona tinha mudado com o passar dos anos, com a legalização da prostituição na Alemanha, etc, etc, consegui ter uma ideia muito mais profunda do que significa aquele bairro para cidade. Tivemos até direito a ver ao vivo uma situação menos positiva entre um homem e uma das mulheres que trabalham ali, mas não vou alongar-me em comentários sobre isso. Direi apenas que apesar da prostituição ser legal e de os trabalhadores da área terem direito a fazer descontos e segurança social... é necessário haver ali mais presença policial. Nunca me senti inseguro ali, mas o mesmo não se poderá dizer das mulheres que lá trabalham...





E literalmente em dois passos avançámos da zona mais imunda para o esplendor dos gigantescos prédios que ostentam todo o dinheiro que ali foi e é investido. Aqui nesta foto temos a sede original do Banco Central Europeu e logo ao lado mais arranha-céus que competem entre si para ver qual se destaca mais em grandeza.

Novamente aqui os comentários do nosso guia acrescentaram muito mais valor a estas vistas (eu já tinha passado ali muitas vezes, mas agora vejo tudo de forma diferente).

Memorial simbólico das vítimas do Holocausto. 

E houve também tempo para viajarmos até um período negro da História, ainda tão presente na realidade alemã de tão recente que é. Pelas ruas de Frankfurt entre as pedras da calçada podemos encontrar estes marcos no chão em frente às casas de judeus vítimas do Holocausto. Lê-se o nome, o ano de nascimento, o ano em que foram retirados às suas vidas e famílias e depois... a data e local da morte, neste caso Auschwitz. Impressionante como estes pequenos pormenores na pedra podem tocar-nos tanto, como se aquele passado tão triste estivesse sempre presente. Um trabalho brutal, em todos os sentidos, do artista Gunter Demnig.

Centro histórico. Casas medievais que foram construídas após terem sido bombardeadas e completamente destruídas nos confrontos da Segunda Guerra Mundial 

Também pelo centro mais antigo da cidade podemos descobrir mais sobre o Apfelwein (ou apple wine), que não é nada mais do que um tradicional vinho de maçã (traduzindo à letra). Segundo os alemães, e o nosso orgulhoso guia, não é o mesmo que sidra. Na foto de baixo podemos ver uma ilustração medieval na parede, sobre a arte de produzir e beber esta famosa bebida. Por acaso acabei por não provar, mas está na minha lista de coisas a fazer.




A nossa tour acabou aqui, não sem antes termos uma interessantíssima pequena discussão sobre as modernas forças da extrema direita e o seu ressurgimento em força na Europa, sobre a crise dos refugiados, sobre o passado e o presente, enfim, também sobre o futuro. E tivemos essa conversa numa antiga igreja que já serviu também como um improvisado parlamento na criação do Estado fortíssimo que é hoje a Alemanha do século XXI, mas que afinal não tem assim tantos anos de história como país verdadeiramente unificado.

Entrada para o bairro medieval e centro histórico.


Esta tour tem a duração de 2 horas e, ainda por cima sendo gratuita, é imprescindível para quem quer saber mais sobre a cidade e as suas pessoas, dando-nos um ponto de vista muito interessante de um jovem, o nosso guia, que viveu aqui toda a sua vida. Recomendo a quem estiver aqui de passagem ou mesmo a quem chegou para ficar, pois é mais do que certo de que a nossa visão sobre uma das cidades mais ricas e mais caras da Europa vai mudar muito depois disto... para melhor ou para pior, caberá a cada um decidir. 

Mas uma coisa é certa. Com todos os seus contrastes arquitectónicos, históricos, económicos e sociais, Frankfurt é uma cidade que é muito mais do que parece, muito mais complexa e misteriosa do que nos poderá parecer à primeira vista. 


O lindo edifício da Ópera, lado a lado com a modernidade.