segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Quarenta e sete



Pedaços de terra voam pelo ar. Elevam-se gritos de euforia e apoio. Ecoam palmas à sua passagem. 

Já o sabemos. "Vem aí o Luís!"

E com velocidade passa, deixando novamente livre aquela parte da pista para os que correm atrás dele. Os olhos seguem-no depois atentos, atrás dos seus movimentos velozes por entre os altos e baixos do terreno. Dali do cimo do monte que dá uma vista panorâmica, sobre a pista de motocross do Alqueidão, conseguimos vê-lo até subir a encosta já por detrás da torre. 

Momentos mais tarde reaparece no local onde continuamos à sua espera. Voltam a bater-se palmas. "É o Outeiro! É o Outeiro!"

Arrepia-se a pele, os olhos brilham, um sorriso rasga-se na face, não cabemos em nós de orgulho. 

Que o Luís Outeiro é um campeão, que sobe ao pódio muitas vezes, não é novidade para ninguém. Por isso hoje gostaria de falar de algo que vai muito para além disso.

Dizem que os grandes artistas ou desportistas, aqueles que se destacam nas suas áreas, têm uma espécie de aura que os torna especiais. Lembro-me  de ter visto há uns anos uma conhecida apresentadora da televisão nacional a descrever o momento em que viu pela primeira vez presencialmente um dos maiores desportistas do nosso país. Dizia ela que à volta dele havia qualquer coisa de diferente, que o destacava de imediato de todos os outros. Não é algo que se veja, mas algo que se sente.

Também não é novidade que o Luís treina muito e tem muita técnica, que só consegue aperfeiçoar com todos os que o ensinam, mas é impossível olhar para ele, enquanto percorre aquelas corridas, e não perceber que há ali muito mais do que só essa aprendizagem. Podemos chamar-lhe Destino ou atribuí-lo uma força colectiva que o acompanha. 

Já o disse antes, num outro artigo, e volto a dizer. O Luís representa todos os sonhos do povo alqueidoense, que cresceu à volta e dentro desta pista, que durante anos viu correr ali pilotos de várias classes, de vários campeonatos, de vários países até, sempre na expectativa de lá colocar também um dos nossos. Muitos miúdos do Alqueidão teriam pouco mais da idade dele, actualmente, quando foram chamados pela primeira vez para pegarem numa bandeira amarela e assumirem o papel de fiscais de pista. E eu sei que muitos sonhavam em estar dentro das corridas. Mas nunca houve essa possibilidade e passaram muitos anos até vermos finalmente essa realidade acontecer. O nosso 47 era ainda uma criança quando nos deu essa alegria. 

E então mais tempo passou. E chegámos aos dias de hoje. 

Foi assim que ontem lá no cimo do monte quis fazer um exercício: olhar para o nosso campeão e tentar vê-lo como se fosse outro piloto qualquer. 

É inegável que, quando o vemos correr, estão muitos sentimentos em jogo. É como disse: ele é a projeção de todos os que sabiam que à "terra do motocross" (como lhe chamam) devia ser feita esta justiça de ver nascer nas suas curvas e saltos um campeão digno de levar o seu nome mais longe. 

Por isso, por momentos, acompanhei todo o trajecto do Luís como se não o conhecesse antes. A conclusão a que cheguei foi ainda mais forte do que imaginara. 

Ele tem algo realmente único, um brilho, que não se via em mais ninguém ali. E não desmerecendo nenhum dos outros, mas tenho que vos contar com as palavras exactas que surgiram na minha mente enquanto o observava. 

"Este puto parece maior... não na idade, mas maior, de uma grandeza que nem sei explicar" - disse a quem estava ao meu lado.

Nós podíamos tirar-lhe o número 47, descaracterizá-lo. Poderíamos dar-lhe outro equipamento, disfarçá-lo. E até mudar-lhe as cores da mota, para que ninguém o reconhecesse. Ele podia apresentar-se como um desconhecido, mas assim que arrancasse da grelha de partida seria impossível não o descobrirmos logo. Os seus movimentos em cima daquela moto são incomparáveis, de uma subtileza que causa admiração, de uma segurança que transmite uma forte certeza de que ele nasceu para fazer isto. 

Talvez seja esse o tal ar que dizem ter os que são grandes, não em tamanho, mas em feitos. 

Quando o 47 faz um salto, nós sabemos que, na sua classe, só ele o poderia fazer daquela forma. É por isso que ouvimos gritar à sua passagem várias vozes que dele conhecem só o seu número, a sua imagem de piloto. Essas vozes não sabem tudo o que está por detrás da máquina que faz correr o sonho. E estas gritam como as nossas, juntam-se em coro. E ele continua a sua tarefa, dando-nos até a impressão de que o faz com uma facilidade impressionante. Quando voa no ar dá aquele jeitinho com a moto para o lado, deixa-nos ainda mais eufóricos, de coração nas mãos. Porque é ele. 

E não, não há igual. 

1 comentário:

  1. Eu sinto estas palavras e a historia só podia dar nisto! Talvez as sinta de modo diferente por conhecer a origem da estrela Outeiro.

    Por pertencer à geração que viu o Outeiro (pai) partir 3 vezes o quadro da sua DT artilhada a 80, por ter ficado com uma queimadura na perna esquerda do escape da KTM 250 do Lois (porque tive um momento de insanidade e saltei para o guarda-lamas da mota cedendo ao convite de dar uma volta à pista) penso saber de onde vem a agilidade da estrela.
    Por ter nascido numa geração feliz mas também assombrada por algumas tragédias que a terra nunca esquecerá e nos marcaram de uma forma inesquecível e hoje ainda nos trazem sofrimento (porque uma geração não é tempo suficiente para apagar estas memorias!!!)... penso saber de onde lhe vem a força e a coragem!

    A estes ingredientes junta-se o tempo, a persistência, a vontade de proporcionar aos nossos filhos aquilo que não nos foi possível ter, o apoio e a dedicação para perseguir um objectivo... e nasce uma estrela.

    Penso que a minha geração lê as palavras do Filipe de forma diferente da geração do Outeiro (estrela) porque são amigos de uma estrela, nós enquanto pais conhecemos a origem e a composição da estrela, e o esforço necessário para que ela se forme, e isso enche-me o peito de orgulho, não fosse eu do Alqueidão.

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