quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Diário de Bordo #8: doar roupa aos sem-abrigo em Berlim e o perigo de o fazer sozinho

foto: "Toleranz" by Sascha Kohlmann, flickr


Qualquer pessoa que já fez algum tipo de trabalho voluntário com os sem-abrigo ou pessoas em extrema pobreza sabe que uma situação aparentemente "simples" pode escalar rapidamente para a rejeição... ou até mesmo para a violência.

É por isso que esse trabalho é (quase) sempre feito em grupos.

As pessoas que vivem nessas condições têm por vezes um grande conflito de sentimentos quando são abordadas, muitas vezes apenas por vergonha, porque não querem sentir-se "expostas", etc.

E eu que já fui voluntário antes em acções com adultos e crianças sabia perfeitamente que não me devia aventurar nisso sozinho.

Mesmo assim decidi fazê-lo agora.

Aproveitando a mudança de casa, escolhi alguma roupa e sapatos que já não usava e aproveitei para limpar o antigo apartamento e levar roupa que outros colegas de casa foram deixando para trás nas suas mudanças. Tínhamos casacos de inverno, camisolas muito quentes e tantas coisas boas que estavam ali sem uso, como é possível não termos pensado nisso antes?

Juntei também bastantes garrafas de plástico. Aqui na Alemanha cada garrafa de plástico tem aquilo a que chamam um código "pfand", ou seja, pagamos 25 cêntimos em cada compra (por exemplo uma água custa 1eur, pagamos mais 25 cêntimos). E depois voltando ao supermercado existem máquinas para a reciclagem que lêem esses códigos e nos dão o valor total num voucher que podemos gastar nas compras ou trocar por dinheiro.

Muitos sem-abrigo e pessoas com muitas dificuldades económicas vasculham os lixos pela cidade à procura dessas garrafas pois é uma forma de juntarem algum dinheiro e comprar alguma comida no supermercado.

Por isso decidi doar as muitas garrafas que fui juntando no último mês. Fui à estação de metro mais perto da minha casa e lá conversei com um dos sem-abrigo que lá estava. Normalmente são um grupo grande mas desta vez só encontrei um deles que não teria mais de 30 anos. Dei-lhe 2 sacos com roupa e calçado e ainda um saco cheio dessas garrafas. Ele praticamente ignorou-me, com vergonha, e eu entendi isso perfeitamente. Mesmo assim agradeceu-me timidamente... e a chorar, algo que me partiu o coração... nunca irei habituar-me a isto, nunca. Para não lhe causar mais "pressão", afastei-me um pouco, mas já conhecendo como estas coisas funcionam, fiquei a observar um pouco de longe, porque já sabia que alguém iria tentar roubá-lo. E foi exactamente o que aconteceu.

Vi um rapaz, um pouco mais jovem que o primeiro, a pegar no saco das garrafas e sair dali. Fui a correr atrás dele. Tirei-lhe o saco e disse-lhe que não o tinha dado a ele... ao que ele me explica que era irmão do primeiro rapaz e que estavam juntos. Desconfiei. Obriguei-o a voltar lá comigo para o provar. Aqui vi a situação escalar para outro nível, ele olhou-me desconfiado, puxou-me o saco outra vez e recusou ao início, mas depois lá me seguiu. Eram mesmo irmãos. E fiquei mais descansado.


Sobre este assunto não posso senão recomendar o livro do George Orwell "Na Penúria em Paris e em Londres". Li-o no ano passado e é um dos meus livros favoritos dele, juntamente com "A Quinta dos Animais" e, claro, o "1984"


O livro é autobiográfico, conta os anos em que o autor viveu como sem-abrigo em Paris e Londres, antes do reconhecimento mundial, e fala exactamente destas terríveis condições de viver na rua, das "máfias" que se aproveitam e roubam os mais desfavorecidos e dos perigos de quem por vezes quer ajudar e mesmo de quem recusa ajuda.


Continua tão actual hoje como no dia em que foi escrito. Aprendi isso, mais uma vez.