quinta-feira, 20 de abril de 2017

A homofobia mata: testemunho de uma mãe


Com a publicação do Deixa-me ser, um livro autobiográfico aberto e directo, tenho recebido muitos e-mails de outras pessoas que se revêem na minha história ou que simplesmente querem aproveitar para desabafar sobre as suas próprias histórias nesta sociedade que, embora muitas vezes se pense o contrário, continua a ser ainda muito homofóbica e transfóbica. Assim, recebi um testemunho muito tocante de uma mãe que faz parte da AMPLOS (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual). É uma "mãe da AMPLOS", com nós gostamos de lhes chamar, porque lhes dá logo um sentido mais terno, que nos aproxima, como se fôssemos todos uma extensa família. 

Com a devida autorização, partilho aqui o seu texto, sem referir nomes, datas ou locais, por questões de privacidade.

Da minha parte, um imenso Obrigado, pois é extremamente gratificante receber estas palavras e poder partilhá-las, sabendo que elas poderão ser a esperança de alguém que passe pelo mesmo. Que se reflicta, que se pense bem sobre a enorme injustiça que é uma família inteira passar por isto só porque uma maioria continua a achar correcto que se perpetue o preconceito. 

E a carta que me escreveu dizia assim:

“Enquanto lia as tuas páginas de vida, no teu livro, fizeste-me reviver o meu passado, devido às impressionantes semelhanças em quase todos os aspectos. Na mesma cidade onde tu viveste, também eu deixei o meu filho num apartamento a ser partilhado com mais dois estudantes. Foi nessa cidade que o P. com 18 anos descobriu quem era. Estava sozinho. Com 19 anos decidiu sair do armário e revelou-o à sua família. O pai não aceitou, tal como o teu. Assim, as portas do armário abriram-se novamente para entrar toda a família e ficarmos lá por um tempo, fechados.
O P. ficou muito doente. Focaste o espelho na tua história. O P. tinha um pequeno espelho que nunca largava e constantemente via o seu reflexo nele, mas nunca gostava do que via. Maquilhava-se, usava um batom vermelho vivo, mas tentava esconder-se, sempre de cabeça baixa para ninguém o encarar. Não se deitava sem o batom. Quando voltou para fazer o 2º ano, o P. estava num estado lastimável, todos os dias telefonava-me em pânico. Eu mandava-lhe mensagens a qualquer hora na tentativa de acalmá-lo. 
Nas férias de Verão o P. também fez o mesmo que tu, tentou suicidar-se. Tomou à volta de 60 comprimidos, antidepressivos, receitados pelo médico de família. Levei-o ao hospital. Quando os médicos me deixaram vê-lo, ele só queria que lhe desse o espelho e o batom. Teve de abandonar os estudos. Enquanto isto, a irmã dele sofria em silêncio. Senti que estava a negligenciar a minha filha, a minha atenção era toda para o P. Mas ela nunca me cobrou nada. Ela sem o saber dava-me ânimo para continuar a lutar. 
Imagino o que deve ter sentido a tua mãe, repara, lidar com a homofobia do marido, a preocupação de se tudo isso estava a afectar a filha e ter de cuidar do filho que se encontrava em sofrimento, doente. 
Por tudo isso, também cheguei ao meu limite (chorava de noite e de dia). Não aguentava mais ver o meu filho naquele estado de sofrimento. Não adiantou o tratamento nem o internamento no hospital psiquiátrico, de onde o P. chegou a fugir, imagina! Nada estava a resultar. Cada vez ficava pior. Eu já começava a desistir, sentia-me tremendamente sozinha. Uma vez falei com uma amiga e começo a chorar, ela sabia mais ou menos pelo que estava a passar, não tudo. Essa amiga só me dizia que eu não me podia ir abaixo pois eu era o pilar da casa, se eu desistisse a minha família desmoronava. Por essa altura já tinha contactado a AMPLOS e era muito apoiada moralmente. Davam-me força, mas claro, só eu podia resolver a minha situação. A homossexualidade não era problema para mim, o problema era a doença mental, depressão, que o P. tinha e que me estava a preocupar bastante.
(...) Resolvi levar o P. a outro psiquiatra. Por essa altura, ele não falava com ninguém, não saía de casa, fechava as persianas com medo de ver gente, mal comia, não dormia nem de noite nem de dia. Para sair de casa e se apresentar na consulta, usava uma camisola com capuz, amarrava o capuz para tapar o máximo da face dele e punha uns óculos escuros, não se via a sua cara. Na primeira consulta falei com o psiquiatra a explicar tudo. Quando acabei, o médico, em primeiro lugar diz que a homossexualidade não é considerada doença e que para isso não há tratamento algum. Também a medicação que o P. andava a tomar não seria a mais indicada, não se via nenhuma melhoria no seu estado de saúde depois de passado tanto tempo de tratamento. Posto isto, soube que estava em boas mãos. Aos poucos ele foi melhorando. Trocou várias vezes de medicação até acertar. Até hoje continua em tratamento.
A cumplicidade entre o P. e a irmã aos poucos foi restabelecida. Sempre foram muito chegados, mas com a doença até da irmã se tinha afastado.  A relação com o pai nunca foi muito chegada e continua assim. Hoje falamos abertamente uns com os outros, mas o pai do P. ainda só espreita através do armário. Isso entristece-me muito. Por isso, fico muito feliz por ti e pelo teu pai, por ele por fim ter aceite e se terem tornado mais próximos.
Chorei quando li aquela parte do teu pai em que muito simpaticamente cumprimentou o teu namorado como se nunca tivesse existido um passado desolador. Chorei quando mencionaste que foste fazer uma formação em Aveiro (formação de oradores para o Projecto Educação  LGTBI da rede ex aequo). Formação essa em que só havia pessoas como tu (como descreves no livro), mas onde não estavam sós, pois tinham ido duas mães e um pai da associação chamada AMPLOS. Foi o melhor fim de semana da tua vida (como o referiste). E para mim também foi. Nunca me tinha sentido tão à vontade num grupo, apesar de ser a minoria entre vocês. É uma recordação muito bonita que vou ter para sempre.
Hoje sinto-me uma afortunada de ter um filho gay. Se assim não fosse, desperdiçava a oportunidade de abrir os olhos e ver o mundo como realmente é. Nunca teria conhecido pessoas fantásticas como tenho conhecido até aqui. Tenho aprendido imenso. Obrigada por existires, a tua atitude perante a vida vai ajudar muitos jovens e vai ajudar a mudar mentalidades para melhor.”

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Links:
site da AMPLOS: http://www.amplos.pt/
site da rede ex aequo: https://www.rea.pt/

3 comentários:

  1. Se fossemos obrigados a escolher apenas um mestre dos muitos que já tivemos, deveria-mos escolher sem hesitação, escolher a vida, pois nela se conservam todos os rios da sabedoria humana de todos os tempos. A esta Mãe que soube ser sábia amando o seu filho incondicionalmente , e ter a capacidade humana da compreensão, que é a capacidade de entender o que se passa com os outros. Foi tudo uma grande dádiva, mesmo os momentos mais pesados e desencontrados, que que também fazem parte da escola de viver. Não há nada mais belo nem mais querido que os filhos.Os filhos são ânsia de vida e eternização de nós no tempo. Continue a procurar na sua Família, preservar a união e bem-querer entre todos, para juntos possam fazer a festa da vida. Também sou uma Mãe - AMPLOS e também me sinto feliz pelo meu filho...sei que ele é um ser humano que irradia muita felicidade e tem sempre muito amor para dar. Obrigada por também ser uma Mãe guerreira e lutadora e sei que muitas Mães como nós vamos ajudar a mudar mentalidades para melhor...e com todo o apoio da AMPLOS vamos continuar a dar mais luz ao Mundo.............................O meu nome é EULALIA ALMEIDA E VIVO NA CIDADE DO PORTO

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    1. Obrigado pelo comentário e pelas suas palavras, Eulália! É bom ler coisas assim, que nos inspiram e dão mais força para continuar. Um forte abraço.

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  2. De tanta emoção nem consigo comentar. Muito para fazer para mudar a cabeça das pessoas.

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