quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Diário de Bordo #10: aventura na Grécia




Em Setembro de 2019, assim meio num de repente decidi ir sozinho para a ilha de Rodes na Grécia durante 7 dias. Queria afastar-me o mais possível da confusão... ou da civilização, por isso escolhi um camping que era na verdade um tipo de retiro isolado na pequena vila de Theologos, imerso num bosque e junto à praia. Precisava de paz, de tempo... e de curar algo que em mim não estava bem. Fui sozinho mas logo encontrei pessoas que também para lá foram assim... e as nossas almas encontraram-se e alinharam-se naquela que para mim foi uma viagem inesquecível. Hoje partilho com vocês as notas que fui escrevendo durante a minha estadia. 

"Algo mágico acabou de acontecer. Então depois de passear pela cidade velha de Rodes e de me ter já apaixonado por isto e pela forma como os gregos têm falado comigo, não só com questões banais mas sempre com admiração e perguntas sobre de onde venho e porquê, finalmente entro num restaurante tradicional e como a minha primeira Moussaka. O facto de viajar sozinho causa-lhes surpresa e por isso um dos empregados de mesa diz-me para ir falar com o dono do restaurante. É um senhor de 70 anos, cansado, sentado numa cadeira à sombra. Primeiro diz-me logo que está com problemas familiares e eu lamento a dor dele. Depois comenta as notícias locais comigo e por fim quer saber como se dizem certas coisas em português, como Obrigado. Explico-lhe e digo também que sei 4 ou 5 palavras em grego. Conto-lhe sobre o meu trabalho e que tenho muitos colegas gregos e que faço muitos voos para a Grécia. De olhos tristes ele diz-me que nunca viajou, que nunca saiu desta ilha e que só trabalhou a vida toda, que aprendeu inglês, mas que não viu o mundo. Depois pega-me na mão e diz assim: "Tu vive. Pensas que já não és muito jovem, mas és. Olha para mim com 70 anos. Explora o mundo e vive. Sempre com limites, sem extremos, sempre com alguns limites, mas vive tudo o que queres viver". Eu fico em silêncio. Tenho uma impressão ligeira nos olhos. Depois digo-lhe que vim aqui mesmo, à sua ilha, ao lugar de onde ele nunca saiu, porque me sentia confuso, às vezes triste, porque perdas recentes me magoaram, porque nesses momentos questionei tantas vezes o estar longe de Casa, e porque precisava de ouvir estas exactas palavras. Ainda nem passei aqui um dia e será possível que tenha já encontrado o que procurava? Algumas pessoas têm um dom, a capacidade de olhar directamente no mais profundo da tua alma. Aquele homem conhecia-me ou foi enviado por alguém, uma protecção, uma Força, algo que me conhece tão bem. Só assim se explicam as coisas que não têm explicação. Sei que nunca vou entender ou saber absorver isto complemente. Mas não preciso."






"Conheci a M. na primeira noite em que cheguei ao acampamento aqui na Grécia. Ela está num projecto de voluntariado aqui e desde o primeiro instante que conversámos muito sobre a minha vida de voluntário no passado. E aos poucos descobrimos que tínhamos muitas ideias em comum. A M. tem um carro e hoje convidou-me para ir com ela explorar o sul da ilha, para onde não há qualquer transporte público. Aceitei logo. Queria descobrir o lado mais selvagem de Rodes, as praias desertas, estar longe da confusão turística. Mas o que encontrei foi um tesouro de um valor incalculável. Andávamos à procura de um sítio para almoçar, por estradas tão estreitas, caminhos tão difíceis... até descermos a montanha até uma praia mais escondida. Havia apenas 3 ou 4 casas. E uma delas era um "restaurante". Na verdade era uma casa de família mas preparavam comida e vendiam. Tinham mesas improvisadas e um menu traduzido num inglês rabiscado. Tratavam do negócio dois senhores e uma senhora, todos já passaram dos 70 anos... logo nos explicaram que tudo o que se comia ali vinha da horta deles, mesmo em frente à casa, ao lado do mar. Lamento por não conseguir transcrever em palavras quanto aqueles olhos me tocaram. Aqueles olhos que já viram e viveram muito tinham uma ternura que não tem explicação. Tinham aquilo que falta tantas vezes no mundo. Mesmo com a barreira linguística (e um dos senhores falava um bocadinho de inglês), mesmo com as minhas limitações alimentares, bastou dizer o que comia ou não e foi me logo trazida comida. Sem porquês, sem isto, sem aquilo. E que comida, e que sabores tão fortes, tão naturais. A verdadeira Grécia toda ali naquela mesa. Ficámos ali imenso tempo na conversa, eu e M., como se já o tivéssemos feito centenas de vezes antes. À nossa volta dezenas de gatos, às vezes vinham e pediam-nos comida. E nós comemos e bebemos. E os senhores sempre preocupados... queriam saber se estávamos a gostar. No fim ainda me ofereceram melancia. E quando fui pedir café, entrei na casa deles e pedi para tirar uma foto às imensas memórias que tinham ali expostas. Depois saí e fui ao pé do mar. Emocionei-me, claro, agradeci tanto pela sorte que tenho, pelas pessoas incríveis que se cruzam no meu caminho. Já passei muito na minha vida, já viajei muito, já fiz tanto, mas uma coisa posso dizer-vos... este dia foi um dos momentos mais bonitos que já vivi. Antes de vir para aqui, brincava, dizia que vinha e já não voltava. Mal sabia. Mas é verdade. O Filipe que aqui chegou não é o mesmo que vai sair daqui. Viajar é muita coisa, é também os lugares comuns e turísticos, mas o tipo de viagem que te transforma... que te leva ao coração profundo das pessoas, dos lugares e das culturas é isto."

"Encontrei aqui também a S., que veio da Polónia, também sozinha. Hoje fomos os 3, eu, a M. e a S. à descoberta das 7 cascatas na ilha de Rodes. Percebem agora quando digo que quando se viaja sozinho nunca se está completamente só? Acabámos por descobrir um túnel que passa por debaixo da montanha... e claro que tínhamos de passar lá por dentro. São 186 metros de pura escuridão com água que nos corre pelos tornozelos e em certas partes quase pelos joelhos! A meio do túnel não se via nada, só via negro à minha frente. Sabem o que é abrir e fechar os olhos e não haver diferença nenhuma? E absolutamente ninguém se atreveu a usar a lanterna do telemóvel com medo que caísse à água. Foi um bocadinho assustador mas ao mesmo tempo uma experiência brutal. O túnel é tão estreito que só tem espaço para uma pessoa, tivemos que ir em fila. O que se encontra quando se sai é tão lindo! Acho que foi uma bela metáfora para as nossas zonas de conforto e para os medos da vida. E aquela comida? E aquela praia com água a 26 graus ali ao fim? Ai Grécia, Grécia."






"São apenas dois dos animais que me fazem companhia no bosque onde estou a dormir aqui na Grécia. Ainda há mais... uns 4 gatos e 3 cães. A este gato chamei Atreus e à burra chamei Hipólita (quem me conhecer mesmo muito bem vai saber porquê). A Hipólita quando me sente a subir ou a descer o monte sai sempre da sua casinha para me vir ver e fazer uns sons, penso eu que a dizer Olá. Também dei nomes aos outros animais, menos a uma. É uma cadelinha de 4 meses e foi me apresentada pela sua dona. Chama-se Drolma. Contei-lhe da minha cadelinha... que nos deixou há pouco tempo e ela diz-me logo "oh... podes ficar com esta, é tua". Mas por questões práticas não a posso levar, claro, nem no meu avião a permitiam. Mas diz-me ela: "Então enquanto cá estiveres é tua". A Drolma vem fazer-me uma festa sempre que chego ao acampamento, ao jantar senta-se ao meu lado, de manhã vem à minha procura. Por curiosidade perguntei: "Qual é o significado de Drolma?". Vem do budismo, significa... libertadora, foi me explicado.  Podia mostrar-vos as praias da ilha (e que praias!) mas hoje queria mostrar-vos estes amores e perguntar: como é que há pessoas capazes de maltratar seres tão puros como os animais?"



"Ontem fui sozinho explorar o lado este da ilha e a vila de Lindos. Acabei por falar com tantas pessoas. Primeiro com 3 senhoras brasileiras a quem, em inglês, pedi para me tirarem uma foto. Depois, percebendo os sotaques da nossa língua misturados no inglês, lá nos pusemos a falar português. Fizeram-me algumas perguntas, admiradas por estar ali sozinho, e descobri que amam Lisboa... e Berlim. Mais tarde conheci um casal alemão que fui reencontrando pelas ruelas da vila. Falei com um senhor grego que andava por ali a tirar fotos. E fartei-me de falar com o rapaz que trabalhava no restaurante tradicional onde fui almoçar. Passou 20 dias em Portugal e diz-me que adorou tudo, principalmente a comida (mas com certeza). Vi o orgulho brilhar nos olhos dele quando lhe disse que me tinha apaixonado completamente pela Grécia. E só queria dizer isto. Não tenham medo de ir sozinhos. Descobre-se tanto dos nossos próprios limites e da coragem que às vezes desconhecemos. E encontram-se sempre pessoas boas com quem podemos partilhar pequenos momentos e conversas tão interessantes. Não se deixem ir nessa narrativa dramática do jornal das 9 que nos quer impingir um mundo inseguro onde só há violência e perigos. Claro que isso existe, mas a uma escala bem menor do que se pensa. E nós, humanos, precisamos é de nos dar mais e de confiar mais uns nos outros, com menos inseguranças e mais empatia. Tantas vezes me perguntam "Mas tu não tens medo?". Hoje respondo, tenho sim, o meu maior medo é de não conseguir fazer isto um dia. Mas até lá vou sorrindo assim, um pouco parvo, um pouco feliz, cem por cento livre."






"Eu na Grécia. E esta foto é tudo menos aquela típica imagem de terras gregas. Engraçado como passamos tanto tempo a fazer poses e depois as nossas favoritas são as fotos que nos tiram sem sabermos. Este sou eu sem qualquer filtro enquanto caminhava descalço pela natureza com a minha mochila de sonhos às costas. Nem quero muito desta vida, só peço que nunca me falte esta força e esta vontade de ir e descobrir."



"Sobre o Drolma Ling Camp... situado num bosque no topo de um monte com vista para o mar, é o lugar perfeito para quem quer relaxar e estar longe da confusão turística da ilha. No camping há vários cães e gatos, que se aproximam e passam muito tempo connosco. Óptimo para quem gosta da companhia destes animais. A vila de Theologos fica a 500 metros com alguns restaurantes, um supermercado e a praia (muito famosa pelos praticantes de windsurf). Funcionários 5 estrelas. A cozinha comum tem tudo o que precisamos para nos servir. Resumindo, é um local silencioso, que convida à reflexão e proporciona o ambiente perfeito para quem quer descansar em contacto com o que há de mais puro na natureza."








"Agora a verdade. Quando decidi ir para a Grécia quis fazer algo diferente. Tinha 7 dias, por isso não queria só visitar a Grécia, mas sim viver a Grécia profunda. Assim em vez de correr 3 ilhas, como planeado, centrei-me só na ilha de Rodes e num sítio muito especial. Uma pequena vila longe da confusão turística. Aí encontrei um acampamento isolado num bosque e que entre muitas coisas oferece a possibilidade de fazermos yoga e meditação (sozinho, claro, ou em grupo). Achei que ia fazer meditação todos os dias. Mas lá não senti essa necessidade. Meditei duas vezes. Uma durante o dia. E outra à noite no bosque. De resto toda a envolvência do lugar foi suficiente para me transformar e equilibrar. Este é um tipo de turismo sustentável, por isso assim que chegamos somos instruídos sobre como poupar água nos banhos, na lavagem da louça, etc. Duas voluntárias trabalhavam diariamente 3 horas por dia a tratar das plantas, uvas e animais. 3 cães, 4 gatos, uma burra e até... pequenos sapos, imaginem, faziam-nos companhia dia e noite. E estes animais deram-me tanto amor, mesmo sem me terem visto antes. Também eu tratei deles todos os dias. Quando cheguei tinha um coração "desenhado" com pinhas em frente à minha tenda, deixado para mim pelo ocupante anterior. E quando parti, deixei o mesmo coração. Curioso, nunca fechei a minha tenda com um cadeado. E acreditem que deixei lá dentro todos os dias não só o meu tablet mas também um documento importantíssimo e sem o qual não poderia trabalhar. No acampamento estavam outras pessoas mas havia esta intuição colectiva de que devíamos confiar uns nos outros. Não devia ser sempre assim? A Ifigenia, que criou e administra o lugar, é uma pessoa iluminada que nos incentivou a ir à mercearia local fazer as nossas compras. Ali toda a fruta, azeite, pão e doces tradicionais vêm de produtores locais. Dessa forma ajudamos a economia da ilha e não propriamente a economia das bugigangas chinesas que se vendem perto dos hotéis de luxo e nos locais mais visitados como se fossem artigos gregos originais. Tudo isto foi acontecendo naturalmente. Com a ajuda das pessoas locais descobri lugares incríveis, comi nos melhores restaurantes, os mais simples e caricatos, os verdadeiros, a preços muito mais baixos, sempre com um ambiente familiar. Também vi os lugares mais cobiçados, mas foi nos mais selvagens que me reencontrei. Quando decidi fazer esta viagem, fi-lo porque os últimos 6 meses foram duros, com muitas coisas boas e um trabalho de sonho, mas com muitos desafios também. Precisava de me desligar de certa forma, mas não sabia como. Este lugar ensinou-me e mostrou-me o caminho. Conheci pessoas incríveis de vários países, de várias gerações e de variados contextos sociais. E eu cheguei ali sozinho, literalmente perdido, mas fui recebido de braços abertos. Conversámos muito, sempre sem medo, com honestidade. A completos estranhos confessei coisas que só eu sei. E eles fizeram o mesmo comigo. E foi libertador. No fim percebi uma coisa. Eu adoro viajar, mas muitas vezes o turismo em massa tem prejudicado e muito as experiências que eu queria que fossem mais autênticas. E bem sei, o meu próprio trabalho está ligado a isso, mas talvez daí mesmo tenha partido esta necessidade de mudar. Agora voltei a casa com outros olhos. Não é que nunca tenha pensado nisto antes, mas faltava-me ser encaminhado e guiado por quem sabe e faz já bem mais do que eu. Nós temos que ajudar os mais pequenos, que lutam todos os dias contra os grandes centros e as grandes cadeias de turismo, temos que nos ligar mais à natureza e uns aos outros. Não chegam as fotos tiradas à pressa porque estão dezenas de pessoas à espera para fazer o mesmo naquele local que já vimos dezenas de vezes no instagram e que é trendy e in e que vai gerar muitos likes e pouca interação humana. Essas imagens também são precisas, também nos fazem bem ao ego, mas é preciso ir muito mais longe, esquecendo nem que seja por um dia os pacotes, tours e os "tudo incluído" que são vendidos a todos de igual forma como se fossem muito únicos e originais. Tudo isto se pode completar. Mas tem de haver um equilíbrio se não queremos destruir os lugares lindos e únicos que a Natureza e a História e a Humanidade nos deram. E agora respondendo à questão «gostaste da Grécia?' vou só dizer que do alto de um monte olhando o mar fiz uma promessa: voltarei todos os anos, para visitar outras ilhas, outras vilas e outras cidades. Assim profundo foi o nosso primeiro encontro."

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