quarta-feira, 18 de maio de 2016

Deixa-me ser - pequeno excerto do livro



Retirado da parte XII do Capítulo 3 do meu livro biográfico: Deixa-me ser. 


"2009, Setembro

(...) Quando falo em segurança, refiro-me ao modo como era acolhido ali, sentindo sempre que nos momentos em que estivesse sozinho, teria sempre na casa C do terceiro andar, um género de família que se improvisava por necessidade. Eu precisava delas e elas precisavam de mim. Ao fim das noites de trabalho, do cansaço dos estudos ou do pós-apocalipse de alguma noitada, havia sempre algum de nós que surgia com um saco cheio de fast food, um filme para ver ou uma conversa simples de se ter. E nessa naturalidade tão própria de sermos assim, fomo-nos conquistando uns ao outros.
  Não demorou muito até que alguma das camas, o sofá da sala ou mesmo o chão de algum dos quartos, passasse a ser também o meu pouso. Vivia, novamente sem o saber, os dias mais felizes da minha vida; até então. Obviamente que se o escrevo agora assim, deixo-te já a pensar em alguma pista para algum tipo de tragédia que se seguirá nos próximos actos, que narrarei como até aqui tenho feito. Mas não penses que o farei de ânimo leve, e podes ponderar que, mais fundo do que fui nos capítulos anteriores, é impossível a um ser humano sucumbir. Terás a tua razão, mas talvez deva acrescentar que nas jornadas anteriores, a minha descida foi feita quase a sós, descendo passo a passo a caverna do meu próprio isolamento. E nunca me dirigi a ti, leitor, mas tinha que o fazer agora, pois daqui em diante iremos juntos perceber que só é possível uma descida tão severa e penosa ao lado mais retorcido e escondido do nosso ser, quando o fazemos acompanhados por alguém que amamos.

Conquistado então o meu espaço naquela casa, que afinal era de todos, passei a frequentá-la com o meu namorado. (...) Pelo menos quando estávamos ali, podíamos sentir-nos completamente à vontade, sem aquele medo inconsciente que sempre nos perseguia quando estávamos num jardim público, nalguma rua, algum café. Aí era sempre diferente, tentávamos sempre disfarçar a nossa intimidade. Ele tinha receio, mais do que eu. (...) O mais natural, pareceu-nos, foi reservarmos os nossos momentos mais íntimos, os beijos, as carícias, trocas de amor, para lugares onde éramos bem recebidos e aceites, embora, claro está, isso fosse completamente injusto quando observado de um ponto de vista social e dos nossos direitos."

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