sexta-feira, 8 de maio de 2015

Isto de andar sozinho - II

       

 10:30h
O dia de hoje nasceu cinzento e mais frio, contrastando bastante com o Sol bonito de ontem, e arruinando quase por completo qualquer tentativa de registo fotográfico.
                Ainda assim, levantei-me muito cedo para aproveitá-lo e fui ao centro beber um café para aquecer. Hoje também não tive direito a lugar “não pago”. Visitei uma igreja absolutamente “uau!”. E escrevo isso porque quando lá entrei soltei mesmo essa expressão em voz alta, apenas para descobrir que a um canto estava uma rapariga admirada e a rir-se para mim. Pensei que estava sozinho.
                Agora estou nos correios à espera para ser atendido. Tenho 20 pessoas à frente. E basicamente estou aqui sentado com três compadres velhotes que comentam todas as mulheres (e raparigas) que aqui passam. “Esta tem cá um pernão...” – a idade não lhes trouxe o juízo. Portanto também já não tenho esperança para mim.
                “Ó rapaz você tem bem que esperar, que isto aqui é a passo de caracol” – diz-me agora um deles. Vou parar de escrever, para falar um pouco com os senhores.
                No entretanto, enquanto pousei o bloco de notas, aproveitei também para dar uma volta aqui na rua (ainda tinha 16 pessoas à frente) e perdi a minha senha. A sério que tinha de ir tirar uma nova senha e voltar para o fim da fila?! Não. A sorte estava do meu lado, dei uma nova passagem pela rua e encontrei o papelinho no chão. Ah Filipe!!



                12:43h
                Estou na esplanada do castelo a pensar sobre o jantar da noite passada. Já me tinha esquecido de como (quase) tudo leva alho na gastronomia alentejana. E o senhor do restaurante insistiu que eu provasse algo que tinha MUITO alho por cima. Disse que não queria, mas o senhor fez questão. E então lá provei. Já não consigo lembrar do nome daquela carne, mas só digo que teria sido realmente muito parvo se não tivesse provado, porque era mesmo muito, muito bom. E nisto chegam dois senhores e interrompem-me o pensamento, estão a perguntar-me se acho que podem fumar aqui. Ao que eu digo que sim, se estamos na rua, mas um deles diz-me que acha que já não se pode fumar na rua, que o governo proibiu isso. Não sou fumador, não sei, explico. “Parecia que estava a fumar” – diz-me o outro. Terá sido porque tinha a caneta na mão? Pareceu-lhe um cigarro? “Eu acho que é só em Lisboa que não se pode fumar na rua, o meu amigo é de lá?”. Digo que não, que não sou. E que tenho a certeza absoluta que lá pode fumar-se na rua à vontade. “Olhe eu vou fumar, se alguém me disser alguma coisa, eu digo que foi o meu amigo que disse que podia”. Claro... Filipe Vieira Branco a Presidente da Câmara de Elvas?



                15:22h
                Já corri a cidade (zona histórica) toda a pé.
                Agora estou no café à “esturricana do calor”, segundo disse agora uma velhinha que até se está “sentindo mal por causa disso”. De facto o tempo melhorou bastante à tarde, uma reviravolta positiva. E a senhora sente-se mal, com razão, diz que teve um “acidente em casa”, caiu na banheira. Mas não pára de falar. Tem uma “amiga muito chata que põe-se a falar, a falar, a falar” e nem a deixa andar para ir ao café. Ainda por cima foi ao médico e ele ofendeu-a porque “morremos todos, não se rale, depois cá lhe fazem as partilhas”. Disse ele, sacana. Não sei se de facto a amiga chata é apenas algum alter-ego da senhora. “Olha agora foi-se o Sol” (primeiro queixava-se do calor, agora queixa-se que se foi a fonte dele). Passou uma nuvem e tapou-o. Aproveito também a deixa, levanto-me e “boa tarde, até outro dia.”
                Quando vou a subir a rua, ouço a senhora dizer: “Olha agora já não tenho escrivão.”
                ESCRIVÃO? É que enquanto ela falava, não parei nunca de escrever. Perspicaz, a senhora?


                



                15:54h
                Vim cortar o cabelo a uma barbearia tradicional. Acho que estou a viver a cidade ao extremo, o que é brutal. Ouve-se fado aqui. Banda-sonora apropriada, certo? Digo eu, que muitos cantam o fado, mas nem todos são fadistas. Eu por exemplo, já fui chamado de fadista e não o canto. “Estranha forma de vida”, choraria alguém. Chega a minha vez. O senhor barbeiro pergunta-me de onde venho, que isto nota-se logo que não sou gente de cá. E eu lá lhe explico a minha origem. Corta-me o cabelo como ninguém, com perfeição, audácia, pormenor. Entre cada corte, vamos falando bastante, sobre o turismo, trocamos ideias sobre o que vai mal, o que vai bem. Deixo-o orgulhoso quando lhe digo que estou a amar Elvas e que acho que é uma cidade lindíssima. “Fico contente de saber, que eu sou muito bairrista” – diz-me o senhor. Aconselha-me mais monumentos e lugares a visitar aqui na zona e também na zona mais perto em Espanha (Badajoz, Mérida, etc). Anoto mentalmente todos os conselhos. Não há melhor guia turístico do que uma pessoa da terra, que conhece tudo e mais alguma coisa. Anoto também a simpatia e prometo voltar um dia, mais lá para a frente, com amigos. Foi uma boa conversa, culturalmente enriquecedora. Só fui parvo porque esqueci-me de tirar uma foto à barbearia, bem o merecia. Mas pelo menos ainda disse ao senhor, depois de saber que o espaço tem quase 50 anos e que já passou de pai para filho, que o turismo não são só os lugares que vêm assinalados nos mapas, mas sítios assim também, como o seu espaço. E disse-o de coração, porque é uma grande verdade e é aquilo que distingue o turista que vê do turista que vive.


                18:50h
E ao fim do dia já vi e vivi de tudo, pontes romanas, torres medievais, fortes, museus, eu sei lá o que é que já vi. Estou cansado mas ainda hei-de ir ali a um sítio.
Ou não, pois quando vou a entrar, vem um segurança e pergunta-me “Desculpe, tem autorização para entrar?”. Pois, não tinha, obviamente. Lá me expliquei, que não sendo destas paragens, não sabia (mas já desconfiava) que ali não podia entrar. E então não é que o segurança me diz quando devo voltar e a que horas de forma a que não esteja ninguém a vigiar e eu possa entrar à vontade? Por essa eu não esperava. Não digo o nome do sítio, para não comprometer ninguém. Mas aqui toda a gente me trata com simpatia, está mais que provado. Até o segurança foi simpático e acolhedor.

Estou aqui recostado na cama e sinto um leve escaldão no pescoço. Foi o Sol, malandro. 



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