domingo, 26 de julho de 2015

Então deixa-me ir.


                Poucas pessoas terão a coragem de sentar-se contigo e dizer: “Preciso de falar com um psicólogo”. Não, falar contigo já não é suficiente. Falar com os amigos não me chega. Explicar tudo à família também não terá resultado. Tem que ser discutido com um profissional, alguém que me observe do lado de fora.
                Poucas pessoas terão o atrevimento de terminar uma vida no entretanto dessa conversa. Não terminaste uma relação, não, se aquilo que tínhamos era já um viver tão sóbrio, uma agenda tão repleta de sonhos que se partilharam.
                Como é que eu ia explicar a mim próprio que de repente já nada disso faria parte de mim? Como assim poderia explicar aos meus amigos que afinal a situação tinha piorado para além do expectável?
                Que eu andava mal, eles sabiam. Mas que tu tinhas decidido isso, jamais alguém imaginaria. Andei dias calado. Primeiro chorei sozinho, depois acompanhado, mas nunca consegui exteriorizar de outra forma. As palavras faltavam-me, porque, afinal, faltava-me tudo, de uma vez.
                Se antes achava que só um psicólogo iria entender onde eu queria chegar, agora tinha a certeza derradeira de que para não chegar onde eu queria, só esse tipo de ajuda poderia intervir de alguma forma.
                Não terei achado estranho portanto que num desses dias tenha acordado com dores no corpo, se a sensação que tinha era a de que estava a ser esmurrado por todos os lados. Tudo o que ainda era força eram as vozes na minha cabeça, faladas a um volume extremo, entre gritos e palavras que eu não compreendia. E eu via e sentia o olhar de quem se preocupava comigo, sentia-o cair sobre mim e fixar-se húmido na magreza que eu arrastava. Não podia expressar-me, então, se tanto havia para explicar.
                Até que voltei a sentar-me contigo e, frente a frente, não fui capaz de odiar-te. Como não existia ódio? Como? Se me apetecia destruir-te e arrancar-te tudo, nem uma lágrima consegui verter, nem uma frase carregada, nada.
                Tinha então chegado a um estado de apatia tão intenso que foi nesse momento que temi não ser capaz de voltar a ser alguém. Pois “eu” é que não era ali, certamente.
                Perdi as viagens combinadas, os projectos em comum. Perdi tudo o que tinha programado. E já não entendia como seria possível programar-me de outra forma. Se a ausência do teu amor era isso, o que seria a total falta do meu amor próprio quando chegasse ao ponto de assim sucumbir?
                A resposta chegou depressa, no dia em que empacotei todos os pedaços da nossa vida. Fi-lo de forma leve e vagarosa, e no processo nem parecia sofrer demasiado, mas quando voltei atrás e vi o meu quarto vazio, testemunhei na carne o maior sentimento de perda que até aí nunca tinha experienciado. 
                Os olhos arderam-me ao chorar com tanta violência, faltou-me o ar até me doer o peito, até praticamente sufocar entre soluços e lágrimas que corriam descontroladas. Se disser que senti que ia morrer, não é exagero nenhum, pois a minha visão toldou-se, as minhas pernas tremeram e senti que tudo à minha volta estava a esvair-se lentamente enquanto fiquei agachado contra uma parede fria. Estava sozinho, sem alguém que me socorresse, por isso não pude senão deixar-me ficar assim. O meu coração batia tão depressa que sentia o sangue aumentar-me as veias e a dor a dilatar-me todo por dentro. E de certa morri aí.
                Foi assim, no entanto despedaçado, que tive que voltar à vida. Esperavam de mim que eu continuasse. E assim forcei-me a isso.
                Celebraria o meu aniversário daí a umas duas semanas. E no secretismo de não desistir, havia um projecto que esperava que eu avançasse. Foi esse projecto que veio de certa forma salvar-me. Foi ele. O livro.
                Estarias no lançamento. Lembras-te?
                A primeira dedicatória seria assinada com o teu nome.
                Não foi.
                Não estiveste.
                E nunca senti que devias lá estar.
              Se naquele dia morri, num sentido mais ou menos figurado, noutro dia nasci. E a culpa, para o bem do mal, foi tua.
                Sem ti não teria acontecido. Mas contigo, muito menos.
                De início senti raiva por não conseguir odiar-te, mas depois percebi que a maior forma de deixar-te para trás era, metaforicamente, abandonar as amarras que poderiam ainda prender-me à imagem que tinha perpetuado de ti: aquela ideia de que eras o ar que eu respirava.
                Essa imagem continua lá. Numa qualquer linha temporal paralela, nós contínuamos juntos e eu nunca disse que precisava de algum tipo de ajuda externa. Nem eu tive essa audácia, nem tu tiveste aquela cobardia.
                Mas na linha real da vida, eu estou num lugar em que jamais estaria se não tivesse  tido um dia a coragem de testar a tua dedicação a mim, ainda que o tenha feito de forma totalmente inconsciente. Imaginava lá que fugirias na presença da mínima dificuldade. Desmentiria isso, aliás, se alguém com poderes de adivinhar, o futuro, viesse jurá-lo a pés juntos.
                Lembro-me de ter de facto falado contigo sobre isso e de teres dito que seríamos para sempre amigos.
                Mas lembro ainda mais que, há uns anos atrás, quando decidi dar-te um beijo ao descer a rua, sem medo, não foi porque queria ser teu amigo. Mas sim porque quis provar-te que eu tinha entrado na tua vida para a mudar drasticamente. Recordas-te que esse gesto ‘anormal’ foi estranho para ti, certo?
                Eu só não sabia que, egoísta, a única mudança aconteceria afinal comigo.
                Talvez eu tenha apenas projectado um tipo de amor que nunca saiu de mim e que tu nunca recebeste.

                Talvez eu tenha sido o culpado.

                Talvez um dia possa entender e perdoar a ti ou a mim. Ou condenar-nos aos dois.


 Talvez alguém saiba até vir a explicar-me isto de haver tanto início na palavra fim.

7 comentários:

  1. " Primeiro chorei sozinho, depois acompanhado, mas nunca consegui exteriorizar de outra forma. As palavras faltavam-me, porque, afinal, faltava-me tudo, de uma vez"
    ||||||
    Adorei

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  2. Amei ! Nem tenho palavras para te dizer o quanto me sinto solidária contigo ! Enfim...

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  3. "Talvez eu tenha apenas projectado um tipo de amor que nunca saiu de mim e que tu nunca recebeste"
    Verdade, a grandeza do sentimento é sempre parte de nós e na sua genuínidade ela não se transfere como um download... Pode é ser ou não percepcionada pelo outro mas é algo que habita em nos com todo o seu valor e não há lugar à culpa, mas sim à vivência de toda essa aprendizagem que tem sempre uma razão de ser... E assim seguir...

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    1. Ora aí está uma grande verdade. "A grandeza do sentimento habita em nós com todo o seu valor". Adorei a frase! Obrigado pelas palavras! *

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