sexta-feira, 31 de julho de 2015

BI – bilhete de identidade



[ nota: isto não é um exercício jornalístico, nem o quer ser ]

Procurei, procurei. E não foi nada fácil encontrar alguém que estivesse disposto a falar comigo sobre sexualidade, muito menos sobre a bissexualidade. Teria que entrevistar alguém que não fosse meu conhecido, que nem fizesse parte do meu círculo. E num meio onde parecem imperar as palavras discrição e sigilo, foi mesmo complicado chegar a alguém que, sem grandes complexos, aceitasse falar desta orientação sexual. Mas lá consegui agendar uma conversa sobre isso, não sem algumas regras, como irão perceber. E foi assim: 

O local escolhido para nos encontrarmos é um dos cafés menos movimentados da cidade. A entrevista não será gravada, não serão registadas imagens, ficando-me pelo papel e caneta como suporte. Por isso sento-me, cheguei mais cedo, e peço apenas um café e uma água, para que me distraiam enquanto aguardo. Na verdade receio que não apareça, que ao último momento tenha desistido de dar esta entrevista. Mas... chega. Tem 21 anos e um ar muito jovem, de facto, de quem poderia ter menos que isso. Mas afinal tem “quase 22”, assegura-me, enquanto, numa espécie de quebra-gelo, começamos a falar de cinema. É o que estuda, na universidade. E tão natural como começou, a conversa flui para a sua primeira declaração: “Quando disse ao meu pai ‘Sou bissexual’ ele só disse ‘Está bem’. E não sei se isso foi bom ou mau, não sei se ele aceitou, porque ele quase nunca fala sobre isso”.
Perante isso, questiono: “Posso então começar a escrever?”.
Diz-me que sim, que posso escrever à vontade e continua com o relato enquanto a minha caneta desliza pelo papel: “Tive uma relação heterossexual. Quando a relação acabou, percebi a minha bissexualidade. Comecei a perceber que tinha algum género de atracção por rapazes, desde a adolescência. E costumo dizer que amo pessoas, independentemente do sexo”.

Perceber isso não terá sido, contudo, muito fácil, pois relembra um episódio grave dos tempos do secundário: “Quando andava na escola gozavam comigo, chamavam-me gay, mesmo antes de eu ter a minha sexualidade definida. Nunca tinha tido uma experiência com rapazes.  Mas as pessoas olhavam para mim e viam algo de diferente na forma de eu ser e de agir. Não tinha hábitos ‘normais’ de rapazes, como jogar futebol ou sair para beber cervejas. E era mais sentimental, o que normalmente é mais associado ao sexo feminino. Por isso gozavam e até criaram um site para falarem da minha sexualidade. Não sei se ainda existe, nunca mais o procurei”.

“E talvez seja melhor não procurar”, penso para mim, sem o verbalizar, enquanto lhe atiro a primeira questão que tinha preparada: “De um ponto de vista muito pessoal, esquecendo todas as definições que existem, o que é para ti ser-se bissexual?”. A resposta é directa. “Ser bissexual é gostar de pessoas. Como diz uma amiga minha: ‘Gosto de pessoas’. Claro que a atracção física é muito importante. Mas há pessoas com quem te envolves psicologicamente, em que por vezes pode até não passar de um ‘flirt’.”
Mas acrescenta, como que afastando-se daquilo a que chama “moda”, sublinhando que não se revê nisto: “Acho que muitas pessoas mais novas dizem que são bis porque acham que é cool, que assim se encaixam nos padrões da sociedade, mesmo sem saberem se são realmente assim. Muitos jovens dizem isso porque celebridades, como o Bill Kaulitz dos Tokio Hotel, também o disseram, e acabam por seguir isso como uma moda, e não como algo que sentem mesmo ser a sua orientação sexual.”
Isso leva-me directamente à questão que tinha em espera: “Pensas que existe mais aceitação sobre a bi do que sobre a homossexualidade?”
“Acho que sim, porque as pessoas acham que é uma fase. Não há uma redução tão grande, como quando és gay. Aí as pessoas acham que é mais redutor, se és gay, és só aquilo, porque só gostas de homens. Na bissexualidade acham que há um escape e que, por gostares de mulheres, vais sempre ter uma vida mais normal, porque podes fugir para isso.”
Então será o estigma social maior na questão homossexual?
“Acho que é mais complicado assumires que és gay/lésbica do que bi. Mas há mais informação sobre a homossexualidade, nos média em geral” – responde prontamente.
Levanta-se uma questão que mutias pessoas querem sempre ver respondida:
“Como é que um bissexual consegue gerir ao mesmo tempo a atracção física pelos dois sexos?”, pergunto, assumindo que é a questão que me levanta mais curiosidade.
“Isso é tão complicado. Há coisas que atraem nos dois sexos. Por exemplo, sinto-me atraído pelos seios de uma mulher e um homem não tem isso”
E há mais promiscuidade ou não? As pessoas bi são mais tentadas a trair? Entende que não. E justifica. “A questão da traição depende muito da pessoa e da sua satisfação na relação, não depende da orientação sexual.” Mas concorda que muitas pessoas não conseguem ver essa realidade da mesma forma: “Muitas vezes as pessoas deixam de falar comigo porque sou bi. Por exemplo, alguns rapazes gay acham que sou indeciso por isso e deixam de me falar. Mas não tem nada a ver com ser indeciso. Isso não me condiciona, mas essas pessoas são retrógadas.”
Talvez isso justifique que muitas vezes se ouça dizer que determinada pessoa “diz que é bissexual para esconder a sua homossexualidade”. Discorda.  “De certeza que existem pessoas a pensar assim, mas não concordo com isso. Podes ter uma relação 50 anos com uma mulher e depois teres com um homem.”
E é, afinal, uma doença como afirma o preconceito... ou não?
“Não é uma doença, mas para algumas pessoas é, porque pensam que as pessoas LGBT não amam, que só querem sexo.”


Relembramos agora o tempo em que decidiu contar às pessoas próximas de si aquilo que sentia: “Revelei primeiro à minha madastra, e decidi contar porque tive medo que alguém contasse primeiro do que eu. Na universidade algumas pessoas já sabiam e não queria que em casa soubessem sem ser por mim. ‘Se calhar é só uma fase’, foi a reacção dela. Disse-lhe que sabia que não era uma fase porque há muitos anos que já sentia pré-disposição para isso, apesar de não ter ainda experienciado. E expliquei que a parte cultural, uma conversa, um interesse, podiam justificar a minha atracção por rapazes.”
Tento aligeirar o tom da conversa e pergunto-lhe: “Se tiveres uma namorada vais contar-lhe que és bi?”
“Para ter uma relação já tinha que haver muito à vontade, empatia. Não teria uma relação sem contar isso primeiro. Não acho que fosse fácil para ela aceitar, porque destruiria algumas esperanças.”
A conversa segue o seu rumo natural e, quase sem darmos conta, o termo “relação aberta” está em cima da mesa.
Não tem grande convicção sobre o tema mas arrisca: “Acho que é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo. Não sei até que ponto concordaria com uma relação aberta, mas acho que faz sentido. Um dos aspectos negativos, a nível sentimental, é que haverá uma ruptura bastante grande. Acabarás sempre por magoar alguém, porque precisas de escapes psicológicos. Numa relação aberta vais sempre procurar outros tipos de amor e carinho, mesmo que não haja um contacto sexual. Pode haver só envolvimente intelectual.”

E o que pode ser feito para que haja mais aceitação na sociedade em geral?
“Haver mais abertura nas escolas, porque as crianças são o futuro e podem ser educadas para isso. Acho que é preciso desconstruir o estereótipo do homossexual feminino e não generalizar essa ideia, como se tem visto em algumas telenovelas brasileiras, por exemplo. Se (as novelas) são um meio de cultura em massa, podem também funcionar dessa forma.”
Antes de terminarmos confessa que sempre teve um parente homossexual na família e que por isso o assunto, apesar de visível, tornava-se tabú. “Os meus pais pediam para não falar na homossexualidade em casa e para não dizer ofensas sobre isso, mas só porque aquela pessoa estaria presente e não gostaria de ouvir.” Em parte isso até pode justificar outra declaração sua: “Recebi mais ofensas antes de me assumir do que depois, porque parecia que as pessoas faziam de propósito para me picar e me levar a assumir aquilo que eu era.”
Lembra ainda alguns “excessos”, que, na verdade,  só podem ser assim chamados pelo preconceito que ainda existe a nível social. Diz-me então sem medo: “Muitas vezes fui sair à noite e andava de mãos dadas na rua, com um rapaz, e as pessoas olhavam de lado. E vão sempre olhar.”
E é por isso que defende, levantando a maior contrariedade de que falamos até então: “Aceitaria sair com alguém mais visível, um homossexual mais excêntrico, sim, apesar de ser discreto e de preferir não chamar à atenção, mas isso tem a ver mesmo com a minha personalidade.”
Quanto ao futuro, como estudante de cinema, está decidido a combater pela visibilidade dos temas LGBTI: “O meu trabalho final de curso será uma curta-metragem sobre a transexualidade, porque é um tema que me interessa bastante”.
Sorri ao dizê-lo, mesmo antes de eu fechar o caderno de notas; enquanto a palavra FIM surge vagamente entre nós, por entre os cafés bebidos, espalhados pela mesa.

E depressa voltamos a falar de filmes, se é que em algum momento deixamos de o fazer.


12 comentários:

  1. E foste pra cama com ele?

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    1. ATENÇÃO: Foram detectados altos níveis de frustração neste comentário. Por favor mantenha-se distante.

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    2. Bem este anónimo para além de frustrado, falta-lhe um pouco de educação e de respeito pelo trabalho aqui apresentado. Enfim, é o que faz ter o pénis na cabeça.

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  2. Goste ou não do artigo, faça comentários construtivos, Anónimo!
    Parabéns, Filipe pelo artigo! :D

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  3. Por pessoas iguais a si é que esta sociedade não progride. Parabéns pela sua ignorância, ela merece um lento aplauso de desprezo.

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  4. Parabéns, Filipe, pela entrevista! :-)

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  5. Como não o conheço, vou só dizer que fico animado sempre que vejo alguém que quis escrever, e que o fez. Que pegou no que sentia e o deu a todos o que vão ao encontro do que contou. Gosto de saber que a vontade de contar o que se sente e vive continua, seja por que caminhos e sensações for. Porque a forma como se sente prazer é apenas um meio para o sentir. Não é pelos outros que sentimos, mas com eles. Não são os outros que nos fazem sentir, mas nós e eles. Porque os outros estão fora de nós, mas nós queremos chegar a eles. E querer escrever para contar é querer chegar aos outros, estar perto de quem nos leia e conheça, pelo que contamos, já vivido. Continua, até um bom caminho. Sérgio

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    1. Muito obrigado pelo comentário, Sérgio. E escrever de facto é isso mesmo. Agradeço muito as suas palavras. São um incentivo para nunca deixar de escrever para os outros. :)

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    2. E um conselho de alguém veterano (que escreve muito): https://www.youtube.com/watch?v=MEzn4Suf4-Q

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    3. É de uma escritora que estou a conhecer, Isabel Allende. Sérgio

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  6. Gostei do teu trabalho e serve muito para analisar e prosseguir em frente, apesar de alguma gentinha estupida que aqui comenta.

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