sábado, 20 de fevereiro de 2016

Começa em C e acaba em O



Terça-feira.

Um dia qualquer numa semana ao acaso. Igual à terça da semana anterior. Um número num calendário que se arrastava sem grandes alaridos.

Mas aquela manhã era diferente.

As notícias mais recentes não eram muito positivas. O meu pai tinha um problema.
A sua saúde fraquejava.

Mas não era um problema qualquer. Aliás, antes dessa terça, não era sequer uma certeza. Era apenas um medo sufocante de que a palavra que começava em C e acabava em O entrasse de repente por dentro, sem pedir licença, derrubando tudo à sua passagem, deitando por terra as paredes do nosso lar sagrado.

Seria possível que algo nos invadisse assim?

Os primeiros exames apontavam para isso. Mas faltava a derradeira confirmação.

Eu já sabia. A mãe também. O olhar esquivo da minha irmã dizia-me o mesmo. E quando a minha avó pediu para eu ter muita força para o que estaria para vir, eu sabia.

Sabíamos todos.

E foi  por isso que nessa madrugada quase não dormi. Nessa manhã acordei cedo, mas não fui com o pai até ao hospital para saber a verdade. Tinha que ficar. E como não tinha descansado, arrastei-me pela manhã fora como pude.
Sem novidades. Ansioso. Sem um telefonema. Nervoso. Sem uma mensagem.

Liguei. Continuavam à espera. Tornei a ligar. A esperava prolongava-se.

E esperando, deitei-me na minha cama e cedi ao cansaço desgastante. Adormeci, se é que se pode chamar assim ao estado em que os meus pensamentos eram mais sonhos que realidade.
Por uma terrível injustiça, tinha aguentado a manhã toda, menos nos últimos momentos. E quando os meus pais chegaram a casa, eu estava adormentado, meio esquecido do mundo. No meu canto, onde ainda residia alguma esperança.

Assim, foi num estado inconsciente que senti a porta do meu quarto abrir-se lentamente, ouvindo depois a voz do meu pai dizer “Então filhote... estás a dormir?”. Ele não disse mais nada. Mas a voz tremia-lhe, saía-lhe sem força. 

Enquanto ansiava pela sua chegada, pouco antes de adormecer naqueles instante, eu imaginei que talvez pudesse não ser nada, que poderíamos estar todos apenas a ver o lado negativo.

Mas agora, de repente, como que a torturar-me por ter pensado assim, a sua voz dizia-me tudo. Não foi preciso ouvir aquela horrível palavra. Soube assim. 
Era verdade. Tínhamos razão. E eu pensava que estava preparado. Mas estava tão enganado. Ainda esperando algum escape, forcei a minha cabeça contra a almofada, esperei despertar de algum pesadelo. Mas sem efeito, era real.

Não chorei em frente ao pai. Abracei-o e não disse nada, pois se falasse não aguentaria. Cairia tudo.
Depois encontrei-me sozinho, saí de casa e procurei um sítio só meu. Subitamente senti-me mais pesado, como se a gravidade me puxasse mais contra a terra, sem conseguir expressar-me, rendido a uma sensação de fraqueza tão intensa como a vontade que tinha de gritar.
E no fundo, bem lá no fundo, gritei. E ninguém me diga que os nossos gritos mudos não conseguem fazer-se ouvir cá fora, pois conseguem, e de que maneira!

Até essa terça eu nunca tinha sentido tanto medo de perder alguém que amava. Esse pensamento tinha-me passado pela mente algumas vezes. Dava-me sempre arrepios.
Mas foi nesse dia que aprendi que ao tornar-se real, o medo dá-nos um propósito.
Não tínhamos como escapar. Uma doença assim era uma doença assim. Era impossível escolher-se entre enfrentá-la ou não.
E havia uma luta para começar.


Nesse mesmo dia jurei que não escreveria essa palavra. Não lhe daria esse gozo; não a essa palavra que parece matar só de se pronunciar.

E assim fomos todos à luta. E lutámos por tudo, juntos. Nunca foi fácil. Mas nem eu esperava que fosse. E mesmo assim eu nunca disse ou escrevi essa palavra.
No dia em que fomos ao hospital saber que podíamos enfim respirar de alívio, vi a face do meu pai transformar-se completamente. A angústia, o peso e a ansiedade deram lugar a um respirar tão calmo e sereno, de olhos brilhantes de alívio.

E nem assim eu consegui processar o sentimento e colocá-lo em palavras. Apenas sorri, ao mesmo tempo em que o abracei com toda a minha Força. Foi, sem precisar de grande justificação, um dos momentos mais felizes da minha vida.

Só 6 meses depois consegui falar de tudo isto com o meu pai. E mesmo assim ainda fraquejei quando tentei formular uma pequena frase sobre o assunto. Foi no último dia do ano, a poucos minutos de fazer a passagem e deixar para trás de vez aqueles dias. “Que grande luta tivemos este ano. E agora estamos aqui!”.

E depois de o dizer, abraçamo-nos os três. Eu, a mãe e o pai. Estávamos ali.

Daquela palavra nem quero lembrar.

Ela ainda me assusta.

E há palavras bem mais bonitas que também começam em C e acabam em O.

Digamos, por exemplo:

coração. 

Sem comentários:

Enviar um comentário